(Foto em destaque: conferência reuniu indígenas na plateia. Foca Lisboa/UFMG)

Taquara, brejaúba, cipó imbé: para os índios guarani, os itens que servem de matéria-prima para peças de artesanato são enviados pelos deuses e possibilitam que eles continuem sendo o que são de fato. “Para eles, transformar materiais em objetos, trabalhar a matéria-prima em outro sentido, é a própria vida”, afirmou a antropóloga Marília Ghizzy Godoy, professora da Universidade Santo Amaro, em São Paulo, em conferência na manhã desta terça (18).

De acordo com Marília Godoy, os objetos estão inseridos no universo da cultura do povo. “Um cesto, que serve para guardar alimentos, tem uma função vital. Não é mera mercadoria, porque é feito sob força vital. Penas de aves e sementes são símbolos da visão cosmogônica dos guarani”, explicou a pesquisadora, que, há cerca de dez anos, assessora grupos de três aldeias paulistas em projetos culturais. Uma das iniciativas coordenadas por Marília é de ensino de artesanato para crianças, o que exige esforço especial, diante da “tentação do celular”.

Marília Godoy: vivência religiosa da palavra. Foto: Foca Lisboa / UFMG

Convidada para a Reunião da SBPC pela Sociedade Científica de Estudos da Arte, Marília foi apresentada pela professora Dilma Melo Silva, presidente da entidade. De acordo com a pesquisadora, os povos indígenas vivem uma moralidade própria entre cultura e natureza. “O pensamento selvagem [ela aplica a expressão de Claude Lévi-Strauss e reconhece que seu uso atualmente é questionável] não é desligado do mundo, ele se integra com a totalidade. É um pensamento concreto regido percepção e pela intuição”, disse Marília Godoy.

Segundo ela, o modo de vida, as práticas religiosas e outras práticas, como a domesticação de plantas, são tratados pela antropologia como um ecossistema transcendental. “E o cosmo ameríndio é orientado não pelo homem como espécie, mas pela humanidade como condição, que é definida pela interação com o outro e integra os indígenas à natureza – rio, floresta, céu, vento e noite são parte deles”, comentou a professora, acrescentando que os xamãs (ou pajés, como são mais conhecidos) conversam com o sobrenatural nas rezas, meditações e curas. “O xamã é o interlocutor que liga os vários mundos contidos no universo mítico.”

Perto das divindades

Os povos Guarani (Mbya, Nhandeva e Kaiowa) somam cerca de 60 mil pessoas nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, vivendo nos modos tradicionais. Segundo Marília Godoy, assim como os outros povos indígenas, os guarani têm abandonado espaços em que contam com estruturas “civilizadas” de moradia, saneamento, educação e saúde.

“Tudo isso causa mal-estar, porque eles querem estar perto dos rios, que, eles alegam, é onde as divindades se sentem à vontade para acompanhá-los”, salienta a pesquisadora, lembrando que as divindades são o sol, as tempestades, a neblina, o fogo, responsáveis por emitir a energia vital que  acompanha os indivíduos por toda a vida.

Ainda de acordo com Marília Godoy, que é mestre e doutora pela USP, a produção da humanidade guarani depende fundamentalmente de uma vivência religiosa da palavra. Por isso, diferentemente de outras etnias indígenas, eles não perderam sua língua. “A língua se confunde com a alma, as crianças não querem falar a língua dos brancos. Os guaranis desenvolveram a capacidade de viver ao lado dos brancos sem se misturar a eles”, concluiu a professora da Unisa.