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Nº 1426 - Ano 30 - 12.2.2004

 

 

Ministro da Educação sabe*

**Manolo Florentino



ministro Tarso Genro sabe que, quando a vida oferece limões, deve-se fazer limonada. Aceitou um ministério estratégico, mas paralisado pela triste combinação entre a falta de verbas, uma administração congruente com os livros escritos por seu antecessor - incompreensíveis - e o pueril antiacademicismo que parece haver tomado conta de Brasília.

Dias depois, teve que negar o que disse ao assumir o Ministério da Educação: que políticas de discriminação positiva não necessariamente implicam regime de cotas, que no Brasil os problemas racial e social estão fundidos, em suma, que a discriminação social é que precisa ser corrigida. Teve a grandeza de desdizer tudo isso elucidando ser pessoalmente contra as tais cotas raciais. Não há dúvida: Tarso Genro é homem de partido.

Já se escreveu que o sistema de cotas é o sonho de todo político - uma canetada e está feita a inclusão social. Sem gastar um único centavo com a educação pública de qualidade que afiance o acesso ao ensino superior por meio do mérito. Menos visível é o verdadeiro perfil da inserção social da Universidade brasileira, reduzida a ralo por onde escorrem recursos para formar só os filhos da elite branca vindos de escolas privadas.

Não é exatamente isso o que mostra o estudo ainda inédito de José Murilo de Carvalho e Mônica Grin, professores da UFRJ, fundado em números contidos no Censo 2000, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2002, no Provão aplicado aos formandos de 2003 e em levantamento feito no Departamento de História da UFRJ. Eles demonstram que dois terços dos alunos da licenciatura em história provêm de famílias com renda média de até dez salários mínimos. Pouco mais da metade dos discentes da UFRJ e 71% dos universitários de todo o país estão nessa faixa de renda familiar.

Ratificando esse perfil, quase metade dos universitários brasileiros estudou exclusivamente em escolas públicas. Apesar da fluidez própria à categoria `pardos' (dois em cada três brasileiros brancos descendem de matrilíneas negras ou indígenas), os dados são igualmente reveladores sobre a suposta Universidade racialmente discriminatória.

Enquanto a Pnad mostra que os autonomeados negros representam 10% da população do Rio de Janeiro, nos cursos diurno e noturno de história da UFRJ eles configuram, respectivamente, 6% e 15% do alunado. São negros 6% dos brasileiros e 4% dos alunos que completaram o curso superior em 2003. Detalhe: as universidades públicas são menos brancas do que as particulares. Semelhante cenário impede postular que, tal como Montezuma, nossos universitários repousem em leitos de rosas. Se provêm em grande medida da classe média, é porque vivemos em uma sociedade desigual, mas não a ponto de vedar o ingresso de minorias raciais na Universidade em proporções próximas ao seu peso na população brasileira.

Além disso, a escola pública e gratuita ainda é um importante meio de acesso ao ensino superior, função em que obteria mais êxito se o sistema público de ensino de importantes unidades da federação não estivesse tão deteriorado. O estudo prova também ser extraordinária a mobilidade propiciada pela Universidade, com tudo o que isso significa em termos de possibilidades culturais e econômicas. Tomando a escolaridade dos pais como índice de mobilidade educacional do alunado, constata-se que 53% dos formandos brasileiros em 2003 tinham pais que cursaram, no máximo, os oito anos do primeiro grau. Eis porque os alunos com alguma mobilidade ascendente chegam a 76% no Provão, a 49% na UFRJ e a 74% no curso noturno de história.

Rápidas mudanças estão ocorrendo, para as quais os cursos noturnos contribuem destacadamente. De 2000 para 2003 houve uma generalizada queda na participação de formandos brancos, diz o Provão, inclusive em cursos de elite, como o de odontologia. O último BOLETIM da UFMG (Edição 1.423, de 22 de janeiro de 2004) informa que, de 2003 a 2004, negros e pardos passaram de 25% para 31% dos inscritos no vestibular mineiro e que, em pelo menos dois cursos de elite (medicina e veterinária), a participação desses segmentos aumentou em 13%. O curso de direito da UFMG itera o papel democratizador dos cursos noturnos: sua criação propiciou que a proporção de negros e pardos saltasse de 17% para 28% do alunado e que os originários de escolas públicas passassem de 22% para 39%.

Embora se saiba que só agora muitos brasileiros estão assumindo a sua negritude, é igualmente correto que essas mudanças ocorrem sem a interferência de políticas afirmativas, alerta o estudo. É cômodo e equivocado transformar a Universidade em panacéia para nossas cruéis desigualdades. Sua função social maior é criar e transmitir conhecimento de qualidade.

Embora reconheça as diferenças entre licenciaturas e bacharelados, o trabalho realizado por José Murilo de Carvalho e Mônica Grin aponta para a necessidade de discutir a reforma do ensino superior brasileiro a partir de uma pauta positiva. Caso contrário, tanto a água quanto a criança acabarão no esgoto.


* Artigo publicado no jornal Folha de SP em 4/2/2004
**Professor do departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor de Ensaios sobre a escravidão, publicado pela Editora UFMG em 2003

 

 
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