Busca no site da UFMG




Nº 1480 - Ano 31 - 21.4.2005

 

 

A convivência possível *

Rosana Tidon **

 

origem e diversidade da vida intrigam o homem desde os tempos pré-históricos. Praticamente todas as tribos humanas já se perguntaram de onde viemos e se existe Deus ou vida após a morte. Como fruto dessas indagações, várias culturas desenvolveram mitos que explicam como o mundo surgiu e como os seres vivos passaram a viver nele.

A ciência também investiga algumas dessas questões, por meio da observação de fatos e fenômenos, propondo hipóteses que são testadas e eventualmente descartadas ou substituídas por outras melhores. As semelhanças e diferenças entre os seres vivos, por exemplo, são estudadas pelos biólogos de várias maneiras. Comparam-se comportamentos de diferentes animais, os ambientes onde eles vivem, e suas semelhanças na forma do corpo, dentre outros aspectos.

Esses estudos sustentam que, entre as várias hipóteses para explicar a origem e diversidade da vida, a mais robusta é a de que todas as espécies descendem de ancestrais comuns que viveram no passado. Nós, por exemplo, somos descendentes dos mesmos ancestrais que deram origem aos chimpanzés e gorilas. As Ciências Biológicas defendem, ainda, que a vida surgiu no nosso planeta há mais de 3,5 bilhões de anos e, ao longo das sucessivas gerações, os seres vivos vêm se modificando.

Sob a perspectiva científica, portanto, não é possível sustentar que os seres vivos foram criados independentemente uns dos outros, em seis dias, e há poucos milhares de anos. É importante ressaltar, entretanto, que a ciência não possui explicações para todas as nossas perguntas, pois há várias questões que simplesmente não são testáveis pelos métodos científicos tradicionais.

Embora a Biologia explique a origem do homem (de onde viemos), ela não nos informa para onde vamos, nem sobre a existência ou inexistência de Deus ou da vida após a morte. Como disse o paleontólogo Stephen Jay Gould, essas questões referem-se a problemas morais a respeito do valor e do significado da vida e seu debate deve ser conduzido por um magistério diferente, muito mais antigo que o da ciência. Trata-se da religião, que não se baseia no uso de métodos científicos, mas em dogmas de fé.

Para citar antigos clichês, a ciência se interessa pelo tempo, a religião, pela eternidade. A ciência estuda como funciona o céu, a religião, como ir para o céu. O impacto da morte recente do Papa João Paulo II, que emocionou profundamente povos com as mais diferentes culturas, é um exemplo do reconhecimento da importância da religião para a humanidade.

Algumas religiões, as chamadas fundamentalistas, interpretam as escrituras literalmente, e por isso são incompatíveis com as proposições defendidas pela Biologia. Outras entendem que a Bíblia reúne reflexões sobre condutas humanas, sob a perspectiva da ética e da moral e que, para compreender o significado das escrituras, é necessário interpretar as mensagens e não as palavras concretas. Essas interpretações, mais flexíveis, permitem considerar os seis dias da criação como eras geológicas, por exemplo, e não dias com 24 horas. Sendo assim, torna-se possível conciliar a ciência com a religião desde que se respeite a autoridade e limitações de cada uma.

As ciências têm ferramentas poderosas para nos ajudar a entender como funciona o mundo. A religião nos ajuda a viver nele com sabedoria. Cada um tem de ter a liberdade de escolher qual religião quer seguir e respeitar os que fizeram opções diferentes; afinal trata-se de fé. Se respeitarmos a diversidade que os biólogos não se cansam de mostrar, teremos condições de contribuir para a construção de uma sociedade mais tolerante, inclusive com relação às diferentes convicções.

A tolerância, segundo a Unesco, é o respeito, a aceitação e o apreço da riqueza e da diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de expressão, e de nossas maneiras de exprimir nossas qualidades de seres humanos. É fomentada pelo conhecimento, pela abertura de espírito, pela comunicação e liberdade de pensamento, consciência e crença. A tolerância é a harmonia na diferença. Não é só um dever de ordem ética. É igualmente uma necessidade política e jurídica. A tolerância é uma virtude que torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma cultura de paz.

A Biologia nos ensina de onde viemos, e nos mostra que somos diferentes uns dos outros. A religião, desde que acompanhada pela tolerância, pode nos ajudar a decidir com sabedoria para aonde queremos ir.

*Artigo publicado na Agência UnB , de 13 de abril

** Bióloga e professora de Biologia Evolutiva na Universidade de Brasília (UnB)

Esta página é reservada a manifestações da comunidade universitária, através de artigos ou cartas. Para ser publicado, o texto deverá versar sobre assunto que envolva a Universidade e a comunidade, mas de enfoque não particularizado. Deverá ter de 4.000 a 4.500 caracteres (sem espaços) ou de 57 a 64 linhas de 70 toques e indicar o nome completo do autor, telefone ou correio eletrônico de contato. A publicação de réplicas ou tréplicas ficará a critério da redação. São de responsabilidade exclusiva de seus autores as opiniões expressas nos textos. Na falta destes, o BOLETIM encomenda textos ou reproduz artigos que possam estimular o debate sobre a universidade e a educação brasileira.