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Nº 1490 - Ano 31 - 30.6.2005

Poesia é a palavra em estado de música

Maurício Silva Júnior

rofessor de Teoria Literária na Universidade de São Paulo (USP), ele é um dos nomes mais importantes da nova geração de compositores da MPB. Em 14 de junho, o pianista José Miguel Wisnik esteve na UFMG para participar do segundo módulo do projeto Jovens Artistas, que busca estimular o debate em torno das expressões artísticas da atualidade. Em entrevista ao BOLETIM, Wisnik comentou temas relacionados à cultura brasileira, como a relação entre música e a literatura e o potencial poético da MPB.


Foto: Foca lisboa

Em seus livros e discos, música e literatura dialogam constantemente. Como o senhor analisa a relação entre os dois campos de produção artística?

A relação mais direta entre música e literatura diz respeito ao caráter rítmico da palavra. São duas artes do tempo, e que têm em comum a dimensão da pulsação. Muitas vezes, a palavra procura ritmos recorrentes, que são musicais. A potencialidade musical da palavra, que está no ritmo, vem à tona com a poesia. Por outro lado, a fala possui melodia sugerida. Na verdade, há uma zona comum, misteriosa, onde as coisas se dizem verbalmente, e, ao mesmo tempo, de maneira não-verbal. Tal confluência entre o verbal e o não-verbal, entre a música e a literatura, dá-se, justamente, na canção. A poesia possui fundamento musical. É a palavra em estado de música. No Brasil, a canção é muito forte culturalmente. Existe vocação, no país, para a palavra cantada.

Qual a proximidade da canção popular com a poesia?

Há, no Brasil, a figura do escritor capaz de transitar entre o livro e a música. Antônio Cícero, Wally Salomão, Paulo Leminsky, Alice Ruiz, Cacaso e Jorge Mautner são alguns exemplos. E não importa saber se as letras das canções podem ser consideradas poesia. Importa a existência de textos que tenham, ao mesmo tempo, leveza e densidade. Caetano Veloso fez-se conhecido como cancionista pop star. E, de repente, escreve um ensaio com aproximadamente 500 páginas [Verdade tropical]. Já Chico Buarque tornou-se um romancista importante no Brasil. Em outros países, é difícil entender essa dimensão do compositor e cantor, que, ao mesmo tempo, investe na literatura. Trata-se de característica absolutamente brasileira, a que eu chamo de “gaia ciência”, expressão dos trovadores provençais e catalãos para o “saber alegre”, representado, no caso, pela relação entre música e poesia. No Brasil, existe a gaia ciência. E nada garante que um texto poético, publicado em livro, seja superior à expressão musical.

O senhor possui vasta produção ensaística. Que contribuição a formação acadêmica trouxe para sua atividade artística?

Para mim, é difícil responder a essa questão. Assim como para os críticos [risos]. A geração pós-bossa nova é formada por muitos compositores que entraram na universidade, mas não concluíram os cursos. Ao contrário, eu e Luis Tatit [compositor e professor da USP] entramos e não saímos até hoje. Como somos atraídos pela reflexão, fizemos mestrado e doutorado, mas sempre nos mantivemos próximos ao universo da música popular. No Brasil, é marcante o fato de o poeta e o compositor transitarem entre as culturas letrada e oral.

Isso se deve a quê?

É uma longa história. De todo modo, diria que a cultura letrada nunca se consolidou completamente no Brasil, mas as culturas orais são muito fortes. Aqui, a cultura letrada desenvolve-se nas “bordas”, o que desfaz a idéia de superioridade da cultura letrada em relação à música e à oralidade. Em vez disso, cria-se uma “terceira margem”, em que a canção se situa. Também na literatura, escritores como Guimarães Rosa, Mário de Andrade e Manuel Bandeira utilizaram-se da música. Assim como os cantadores nordestinos têm relação com os livros, pois formam seu repertório em coisas lidas em livros, onde tiram instrumentos para improvisar.

Alguns críticos comentam a falta de definição dos movimentos literários da atualidade. Como o senhor analisa a literatura brasileira produzida hoje no Brasil?

A homogeneidade não é o desejo da literatura. Mas o universo literário brasileiro ja foi mais definido do que hoje. De certo modo, ele está mais esgarçado. Isto é problemático em um país pouco letrado. Não existem revistas literárias consistentes. De um lado, as resenhas jornalísticas não dão conta do que contestam. De outro, há a produção acadêmica, que possui ritmo mais lento, e não acompanha a dinâmica da produção literária. Portanto, ficamos sem o lugar onde se reconhece o território da literatura, já rarefeito. Isso não é bom, embora seja compensado pela diversidade.

O que há de novo na música brasileira?

Chico Buarque diz que a canção tal como ele se acostumou a fazer, com harmonias requintadas, melodias e apuro letrístico, talvez tenha sido algo para o século 20. Segundo Chico, hoje teria vitalidade algo mais rente à fala, à intervenção, ao depoimento. O rap, portanto, indicaria este deslocamento do lugar da canção. Eu também acho que o rap é o sinal, potente, de um acontecimento novo, da expressão vinda das “bordas”, das classes muitas vezes não-escolarizadas. Acho que as coisas se deslocam num jogo de forças. Por sua vez, a grande canção brasileira do século 20 se deslocará para o lugar onde hoje se concentra a poesia. Ela existe para um público menor, mas precisa continuar a existir. O próprio Chico diz que todos querem ouvir as músicas feitas por ele nas décadas de 60 e 70, mas que poucas pessoas se interessam pela produção da década de 90. Enfim, ele também é um compositor novo [risos]. Isso é um sinal dos tempos.