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Nº 1544 - Ano 32
21.08.2006

Entrevista / Justino Magalhães

“A escola deve assumir o papel
de instituição-referência”

Ana Rita Araújo

atedrático da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, o professor Justino Magalhães permanece na UFMG, como professor-visitante, durante o mês de agosto. Além de desenvolver trabalhos conjuntos com pesquisadores mineiros sobre seu principal foco de estudo – a história da cultura escrita e dos sistemas escolares – Magalhães trouxe a alunos de programas de pós-graduação o debate sobre o processo de escolarização das sociedades portuguesa e brasileira e assinou convênio de cooperação entre sua Universidade e a UFMG.

Foca Lisboa

Magalhães: escola afeta toda a existência humana

Integrante da comisão que trabalha pela aplicação da Convenção de Bolonha – que tem como meta a unificação progressiva dos currículos europeus –, o pesquisador português afirma, em entrevista ao BOLETIM, que considera “possível e desejável” uma unificação de currículos na América Latina.

Qual o tema do mini-curso que o senhor está ministrando na UFMG?
Ele é uma síntese sobre a formação histórica dos sistemas escolares e a mundialização do modelo educativo centrado na escola. Nos últimos dois séculos, as sociedades encontraram na escola uma estrutura que responde a desafios análogos em todo o mundo.

Este é seu principal foco de atuação?
Na verdade não. Preocupo-me em entender a cultura escrita, no quadro mais vasto da modernização, onde a cultura escolar é uma das dimensões. A cultura escrita é o meu maior desafio. Em todo caso, esta análise etno-escolar da educação impõe-se pela centralidade que o modelo escolar assumiu, tornando-se dominante. Compreender o fenômeno da escola e sua evolução histórica tornou-se quase inevitável. A escola afeta toda a existência das pessoas – da infância à morte.

Neste contexto como o senhor vê a idéia de escola em tempo integral?
É um processo que deve ser muito articulado com as dinâmicas territoriais e sócio-comunitárias em que a criança está inserida. O modelo escolar desenvolveu-se muito focalizado na instrução, no rigoroso trânsito da informação, a partir de uma gramática correta, de uma conceitualização vigiada pelos manuais, pelos programas e pela ciência. Mas há dimensões educacionais da criança, do adolescente ou do adulto, que jamais poderão ser cumpridas a partir do modelo escolar. Isto não impede que se repense a escola na sua integração sócio-comunitária e que ela assuma mais responsabilidades na agenda integral da educação da criança. Além de instruir, a escola pode ordenar a educação para outros espaços, junto de outros agentes e vivências educacionais. Eventualmente a escola terá que assumir essa centralidade educativa, mas deve diversificar sua prática, permitindo que a criança reorganize sua vida a partir de outros grupos de referência. A criança nunca deverá, por exemplo, sair da escola para visitar museus, ou para freqüentar um curso de natação envolvida com a sua turma.

Por que é preciso organizar outros grupos para novas tarefas?
A criança precisa de uma entidade que confira congruência ao seu processo de crescimento. E esta congruência será mais rica se tiver oportunidades diversificadas do ponto de vista espacial, sócio-cultural e da sua própria experiência de vida. Se uma criança ocupa na sala de aula determinada posição grupal, às vezes até com alguma dificuldade de aprendizagem, nada impede que ela assuma uma liderança na piscina, resgatando um papel grupal que estava comprometido. A escola deve ser chamada a esse desafio de agendamento da educação, a assumir o papel de instituição-referência. Parece-me que aí poderemos avançar, e assim a idéia de tempo integral será interessante, rica e inovadora. Mas, por outro lado, será uma experiência empobrecedora se criarmos apenas sucursais da escola, obrigando as crianças a permanecerem ali apenas para fazer tarefas eminentemente escolares.

O processo de unificação de currículos na Europa não prejudica as culturas e especificidades locais?
A história do sistema educativo mostra que as universidades nunca foram muito acantonadas nas culturas locais. A Universidade sempre trabalhou os seus currículos não propriamente a partir dos seus alunos, das regiões onde se inserem, ou do mercado de trabalho e das economias locais. Esta é a grande crítica que as universidades precisam enfrentar, porque foi assim que elas sempre trabalharam. Nesse sentido, não há grande perigo de a unificação curricular afetar as culturas locais. Em todo caso, a convenção de Bolonha tem algumas sutilezas, porque não unifica a substância dos currículos, mas critérios de desempenho e de aquisição de conhecimento. Assim, uma equivalência de grau não atesta que o aluno tenha cursado exatamente as mesmas matérias numa universidade ou em outra. Foram criadas unidades de crédito, medidas de referência convencionadas, com base nas quais se pode, a partir de agora, aferir o trabalho dos estudantes e conferir equivalências entre diplomas e universidades.

Seria possível transpor a idéia de unificação de currículos para o Cone Sul ou para a América Latina?
Acho que é possível, porque a economia, os sistemas de produção e de informática e os desafios são praticamente idênticos. Os estudantes ganham muito quando mergulham em outras culturas universitárias. No sistema de globalização em que estamos envolvidos, é possível – e cada vez mais necessário – abrir e criar parâmetros que permitam a circulação de pessoas, porque a resposta aos desafios locais terá de ser cada vez mais definida em função de referências externas.