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Nº 1589 - Ano 33
05.11.2007

Pedra de tropeço

Livro analisa representações do mal em diversas tradições literárias

Ana Maria Vieira

Monstros e monstruosidades na literatura, coletânea de sete artigos organizados por Julio Jeha, professor da Faculdade de Letras, é a mais nova contribuição para compreender um tema, até certo ponto, outside na academia: o mal, por meio de suas representações literárias. Com lançamento previsto para 10 de novembro, pela Editora UFMG, a obra resulta de abrangente trabalho realizado pelo grupo de pesquisa Crimes, pecados, monstruosidades: o mal na literatura.

Reunidos desde 2005, sob a coordenação de Jeha, os integrantes manifestavam, desde então, rara clareza sobre suas intenções: “estudar textos de diversas culturas e épocas para analisar a onipresente incapacidade humana de enxergar o outro sem preconceito”. O primeiro produto desse esforço traz agora estudos sobre esses seres reais e imaginários no cinema, nas cidades, na vida contemporânea e nas literaturas grega, hebraica, brasileira, de língua inglesa e de Jorge Luis Borges.

Etimologicamente, monstro origina-se de mostrar, apontar um problema ou alguém diverso de si mesmo.

Monstros surgem quando não conseguimos acessar a realidade. Eles são a pedra de tropeço do conhecimento e, nesse sentido, um escândalo epistemológico”, reflete Jeha, lembrando que a impossibilidade de não explicar o que existe impede a morte do monstro na civilização. Em seu corpo corrompido moral e fisicamente, ele expressa esse estranhamento e “tudo o que é perigoso e horrível na experiência humana”, observa o professor. Na extensa literatura e vivência dos homens, os monstros surgem como esfinges, dragões, demônios, aleijados, quimeras, facínoras, viciados e criaturas que escapam do controle social. São símbolos do obstáculo à perfeição e à felicidade. Em outras palavras: encarnam o mal.

O mal existe?

“O mal existe a partir de uma realidade moral”, defende o organizador do livro. Conforme sua percepção, é a transgressão infligida ao conhecimento, à religião e à lei que permite o mal na sociedade. “Negadas essas regras, surgem então o monstro, o pecado e o crime”. Os monstros sociais – personificados na história por Hitler, Stalin e Mao Tse Tung, por exemplo – nada mais fazem do que desconhecer os limites morais.

Foca Lisboa
jeha
Julio Jeha: "monstros surgem quando não conseguimos acessar a realidade"

É nesse aspecto que esses entes são fenômenos datados e produtos de suas culturas. Assim, o monstro arcaico perde em parte sua força na vida contemporânea. Já não retrata os males modernos, os seres prodígios da natureza ou produtos de aberrações da ciência nem os entes que infernizam a alma humana diante de Deus. “No final do século 20, o monstro cede espaço para a monstruosidade, representada pela transgressão moral”, explica Jeha.

Após 11 de setembro, a literatura sobre o tema do mal floresceu, e novo protagonista desse gênero pôs sua face à mostra: a vulnerabilidade dos indivíduos, que a qualquer momento podem ser atacados.

Segundo o professor, a tradição do tema do medo e do horror na literatura estrangeira não encontra eco em solo nacional: “As culturas inglesa, alemã e norte-americana, calvinistas e puritanistas, são muito repressoras, e a pessoa encontra limites para se expressar. É a arte que faz esse papel. No Brasil, temos o carnaval, você se mascara de monstro e vai brincar. O horror na arte não é da nossa tradição”, conclui.

Os monstros segundo Borges

Os gregos engendraram a quimera, monstro com cabeça de leão, com cabeça de dragão, com cabeça de cabra; os teólogos do século II, a Trindade, na qual inextricavelmente se articulam o Pai, o Filho e o Espírito Santo; os zoólogos chineses, o ti-yiang, pássaro sobrenatural e vermelho, dotado de seis patas e quatro asas, mas sem cara nem olhos; os geômetras do século XIX, o hipercubo, figura de quatro dimensões, que encerra um número infinito de cubos e que está limitado por oito cubos e por vinte e quatro quadrados. Hollywood acaba de enriquecer esse inútil museu teratológico; por obra de um maligno artifício que se chama dublagem, propõe monstros que combinam as ilustres feições de Greta Garbo com a voz de Aldonza Lorenzo. Como não tornar pública nossa admiração diante desse prodígio penoso, diante dessas industriosas anomalias fonético-visuais?

(Jorge Luis Borges, citado em Monstros e monstruosidades na literatura)