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Nº 1592 - Ano 34
26.11.2007

Montaigne e o preceito socrático

Telma de Souza Birchal*

Michel de Montaigne nasceu em 1533, na região de Bordeaux, primogênito de uma família nobre. Seu pai o educou cuidadosamente na tradição humanista do Renascimento. Montaigne exerceu, durante alguns anos, a função de juiz no Parlamento de Bordeaux.

Aos 38 anos, declarando-se cansado da escravidão dos assuntos públicos, decide retirar-se para o seu castelo e dedicar-se a seus livros de poesia, literatura, história e filosofia – com a intenção de se ocupar mais de si mesmo do que do mundo exterior. Esse projeto, porém, não se realizou totalmente, pois foi convocado pelos reis para desempenhar missões diplomáticas, além de ter sido prefeito de Bordeaux por duas vezes.

Sua vida transcorreu no período conturbado pelas guerras entre católicos e protestantes (a noite de São Bartolomeu ocorreu em 1572). A figura do “filósofo na torre”, portanto, se alguma vez foi seu projeto, não tornou-se realidade. De qualquer forma, desse retiro relativo nascem, em 1580, os Ensaios.

Uma obra aberta e em movimento: talvez sejam essas suas características mais marcantes. Montaigne a retoma e modifica constantemente ao longo da vida, sobretudo acrescentando novas reflexões. São três as edições dos Ensaios: a de 1580, a de 1588 e a de 1595 (póstuma). Entre uma e outra, o tratamento dos problemas vai ganhando em complexidade, as perspectivas de abordagem se desdobram, os exemplos se multiplicam e novos autores são incorporados e analisados. O filósofo afirma que poderia escrever seu livro “enquanto houver tinta e papel no mundo”.

A obra trata dos mais diversos temas, desde aqueles clássicos da filosofia (“Que filosofar é aprender a morrer”), passando por outros ligados às questões de seu tempo (“Dos canibais”) e chegando a temas prosaicos e cotidianos (“Do dormir”) – todos escritos com maestria literária. Que o leitor não se deixe enganar por seu caráter não-sistemático – a acuidade filosófica dos Ensaios marcou o pensamento de leitores ilustres, como Descartes, Pascal, Rousseau e Nietzsche.

Há muito mais o que dizer sobre os Ensaios, mas, nos limites deste artigo, vou deter-me em um único ponto: Montaigne compreende seu livro como um auto-retrato – “é a mim que pinto”, escreve na apresentação da obra. O livro é um registro de suas reflexões: “Estão aqui minhas fantasias, pelas quais não procuro dar a conhecer as coisas, mas a mim”. Montaigne reconhece, portanto, a particularidade de seu discurso: expressão de seus pensamentos, tudo o que é dito o é de seu ponto de vista, e não como um saber que se pretende objetivo, para usar a terminologia atual.

Dizer as coisas não como elas são, mas como lhe parecem – assim Montaigne define seu projeto. Os Ensaios são, assim, o lugar da expressão de sua subjetividade. Portanto, conclui ele na apresentação “Ao leitor”: não há nenhum motivo para que o leitor desperdice seu tempo num assunto “tão frívolo e vão”. Perderá muito aquele que acreditar em suas palavras e fechar o livro.

O próprio autor se encarrega de declarar, portanto, que não se encontram nos Ensaios ciência e saber, mas o discurso de um ignorante que não conhece o fundamento das coisas, o que está em perfeita consonância com a perspectiva cética de Montaigne. O leitor tem, então, todo o direito de perguntar pela importância desse texto. Por que lhe interessaria a expressão da opinião subjetiva de alguém que, ainda por cima, afirma ser ignorante? Minha resposta a essa questão é que há, nos Ensaios, uma retomada do “conhece-te a ti mesmo” socrático, ou seja, uma profunda consciência da própria ignorância, o que é algo de grande significado epistemológico, ético e humano.

Uma pessoa consciente de que o que ela diz expressa menos a verdade das coisas do que sua visão delas, além de não estar iludida sobre sua própria condição, será refratária a todo dogmatismo e aberta a considerar outras opiniões. Não é à toa que, naqueles tempos de guerras religiosas, Montaigne foi um crítico das posições extremadas e um defensor da tolerância. E, ainda, no início do colonialismo europeu, fez uma aguda crítica ao etnocentrismo – antes mesmo da existência dos termos “tolerância” e “etnocentrismo”.

Exemplos de opiniões expressas nos Ensaios: os europeus, ao queimarem os ditos “hereges” na fogueira, são mais cruéis que os canibais do Brasil, que pelo menos assam a pessoa depois de matá-la; nossa razão é muito influenciável por nossos interesses e paixões, portanto desconfiemos dela; em política nem tudo o que é útil é honesto; a velhice não torna as pessoas nem mais virtuosas nem mais sábias; a condição humana é “maravilhosamente corporal” e é um erro se contrapor a isso.

Em síntese, quando Montaigne se pinta como alguém que tem profunda consciência da finitude da condição humana, ele nos dá a melhor credencial para que levemos em conta suas opiniões e ensaiemos, com ele, algumas possibilidades.

 

(Nota do autor: A melhor edição dos Ensaios em português é a da Editora Martins Fontes, tradução de Rosemary Costhek Abílio)

*Professora do departamento de Filosofia da Fafich e autora do livro O eu nos ensaios de Montaigne, lançado pela Editora UFMG

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