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Nº 1592 - Ano 34
26.11.2007

Semi-escravidão nas máquinas de costura

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costurando

Itamar Rigueira Jr.

Juntem-se no mesmo caldeirão os efeitos da globalização e as condições miseráveis de vida. Está pronto o caldo de que se alimentam realidades como a do trabalho semi-escravo em plena indústria de roupas de São Paulo. Ali se concentra grande parte dos imigrantes irregulares oriundos de países vizinhos, cujo drama é um dos principais alvos dos estudos do professor Francisco Luiz Teixeira Vinhosa, do departamento de História da Fafich.

O fenômeno das migrações ganhou características singulares com a globalização: a movimentação é generalizada e suas motivações são econômicas, no âmbito dos indivíduos e das famílias. Gera problemas como as prisões e mortes na fronteira do México com os Estados Unidos e reações de nações européias desenvolvidas aos movimentos migratórios do leste do continente.

Enquanto isso, o Brasil exerce forte atração entre bolivianos, peruanos e outros vizinhos cujas perspectivas de uma vida melhor são remotas, sobretudo nas zonas rurais e periferias urbanas. “Eles entram no país com certa facilidade pelas fronteiras terrestres, muitas vezes com vistos de turista, e encontram um ambiente livre de xenofobia, sendo, de certa forma, absorvidos”, conta Francisco Vinhosa.

Estima-se que haja mais de 100 mil bolivianos vivendo na cidade de São Paulo, dos quais 70 mil ilegalmente, segundo cálculos assumidamente imprecisos de pesquisadores, órgãos de governo e entidades como a Pastoral dos Migrantes Latino-Americanos, que presta apoio material, jurídico e espiritual a um expressivo contingente.

Os bolivianos trabalham e vivem em condições precárias nas chamadas oficinas de costura em bairros como Brás, Pari e Bom Retiro. Em espaços exíguos, eles passam até 17 horas debruçados sobre máquinas para produzir roupas. Dormem e comem ali mesmo, muitas vezes na companhia de crianças. Aceitam salários que não passam de R$ 500 e são privados de direitos trabalhistas.A relação é de cruel cumplicidade: eles não podem denunciar seus patrões, porque também estão à margem da lei.

“Esse tipo de exploração não é fato residual do sistema, mas parte dele”, diz o professor da UFMG. “Como é que parte de nossa indústria pode competir com a China, por exemplo, sem explorar esse tipo de trabalho escravo?”, questiona. Ele conta que o negócio das confecções era gerido predominantemente por coreanos, que montaram lojas e deixaram as pequenas oficinas para bolivianos que continuam a explorar seus compatriotas.

Uns não têm noção clara da exploração, outros entendem o que sofrem, mas preferem viver aqui. “Optam por ficar até porque vislumbram uma chance de regularizar sua situação no país e melhorar de vida”, explica Vinhosa.

Legalização difícil

Francisco Vinhosa lembra que o Brasil impõe restrições à aceitação de estrangeiros. O assunto é regido pela Lei 6.815, de 19 de agosto de 1980, que privilegia a imigração que traga conhecimentos, tecnologia e investimentos. Há mais de dois anos uma nova legislação para estrangeiros é debatida no Congresso Nacional. “É preciso mesmo atualizar a lei para contemplar também os trabalhadores sem especialização”, defende o pesquisador.

Segundo Vinhosa, mesmo um acordo diplomático com o governo boliviano – firmado em agosto de 2005 – visando à regularização dos imigrantes não foi a melhor solução, pois suas exigências são difíceis de cumprir. Não é fácil para esses trabalhadores conseguir em seus países certidões de antecedentes criminais. E até documentos como passaporte e carteira de identidade podem ter-se perdido durante a viagem ao Brasil ou estar retidos com os patrões. “Isso sem falar nas taxas e multas, que são altíssimas para os padrões desses trabalhadores”, acrescenta Vinhosa.

Ele explica que o imigrante tem medo de se apresentar às autoridades e não conseguir cumprir as exigências, o que pode resultar em deportação. Receio parecido impede que imigrantes doentes – a tuberculose tem sido impiedosa, por conta das precárias condições de moradia e trabalho – recebam agentes de saúde.

Uma nova legislação traria benefícios diretos para a vida dos atuais clandestinos no Brasil. Embora o Sistema Único de Saúde (SUS) não negue atendimento a estrangeiros, eles se queixam de obstáculos no dia-a-dia dos hospitais públicos. Além disso, informa o professor da UFMG, os filhos dos imigrantes ainda não têm garantias quanto à certificação de seus estudos.

Refugiados

O interesse do professor Vinhosa pelo tema levou-o a ocupar um lugar no Comitê Executivo da Fundação Migrantes e Refugiados Sem Fronteiras, sediada em Rosário, na Argentina. Nos seminários e fóruns promovidos pela Fundação, sempre em parceria com a Associação Civil Insieme Argentina, das quais participam representantes de governos, ONGs e estudiosos, são discutidas as características dos movimentos migratórios e formas de integração que tornem mais justas as condições de vida dos migrantes.
O debate sobre uma nova lei de estrangeiros certamente será um dos temas das aulas de Vinhosa no próximo semestre. Ele volta a oferecer, em 2008, uma disciplina optativa sobre as migrações no âmbito da América do Sul e do Brasil.