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Nº 1627 - Ano 35
29.09.2008

opiniao

Educação e dignidade

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

A socióloga Agnes Heller sugere uma distinção entre as necessidades humanas que considero muito útil no que tange à análise aqui proposta sobre a crise por que passa o processo educativo. De acordo com a pensadora, os seres humanos têm dois tipos de necessidades: as alienadas, quantitativas, que dizem respeito ao poder e ao dinheiro, e as radicais, qualitativas, que se referem à introspecção, ao divertimento, à amizade, ao amor, à convivência. Acredito que uma educação seja positiva se ensina a preferir sempre as necessidades radicais, limitando ao máximo as necessidades alienadas, do dinheiro e do poder. A cobiça de poder é uma neurose extremamente perigosa para si e para os outros. E o pior efeito do poder consiste em tolher a dignidade, seja de quem o exercita, seja de quem a ele se sujeita.

Educação e dignidade são fenômenos indivisíveis. É necessário dignidade tanto aos educadores quanto aos educandos. Explico-me melhor, recorrendo ao conto A rosa de Paracelso, escrito pelo argentino Jorge Luís Borges. O autor conta que, em direção ao final de sua longa vida, o velho Paracelso vivia isolado em uma casa no alto dos morros. Seu último grande desejo era finalmente encontrar um aluno inteligente a quem transferiria todo o seu saber. Um dia ouviu baterem à porta, correu para abri-la e lá estava, na sua frente, um belíssimo jovem, que lhe disse: “eu vim de muito longe porque conheço a tua fama. Tu és um grande mago, um grande estudioso, e eu, antes que tu morras, quero aprender tudo o que sabes, incluindo o segredo de transmutar as pedras em ouro. Em troca, te trouxe todas as minhas riquezas e toda a minha apaixonada vontade de aprender”.

Paracelso escarneceu dele. Disse-lhe que o paraíso existe e que ele se faz presente nesta terra em que vivemos. Disse-lhe que existe também o inferno e que consiste no fato de não percebermos que vivemos em um paraíso. Ao jovem que insistia em ter uma prova sobrenatural e que lhe perguntava qual seria a meta da nossa viagem terrena, respondeu, dizendo: “cada passo é a meta”. O jovem, porém, insistiu ainda no pedido de um milagre e lhe sugeriu um aparentemente simples. Pegou uma rosa que despontava de um vaso e a atirou no fogo da lareira. “Se és um mago, não te custa nada fazer com que a rosa reviva!” E, já que Paracelso insistia em dizer que não era capaz de semelhante milagre, o jovem recolheu as moedas que colocara sobre a mesa e foi embora. Só então Paracelso se inclinou sobre o fogo, recolheu as cinzas da flor queimada, deu-lhe um sopro e recolocou no vaso a rosa revivida.

Considero essa história de Borges como uma das mais belas metáforas da dignidade pedagógica. O educador, a exemplo de Paracelso, é realmente capaz de reviver uma rosa queimada, desde que sua dignidade não seja colocada em risco.  Já o educando, caso siga os passos oportunistas do jovem que procurou o velho sábio, reforçará o pelotão dos adeptos à lei do menor esforço. Estes acreditam cegamente que é preferível possuir o que se almeja sem o merecer a merecer, mesmo que não possua o que é desejado. A inversão desta escolha alienadora é o que propõe a dignidade. Por ela ser radicalmente a lei do maior esforço, é que devemos cada vez mais estimular esse norteador do comportamento humano para que alcancemos uma educação de qualidade, pautada pelo encorajamento do caráter ético.

O dicionarista Antenor Nascentes destaca um significado que julgo relevante para compreender o que seja a dignidade: “consciência do próprio valor”. Ao perceber que o jovem estava focalizado no resultado operado pelo milagre e não no processo de aprendizado para alcançar este saber, o educador Paracelso não se envaideceu com os mimos do aprendiz e preservou seus valores, o que fortaleceu ainda mais sua auto-estima. O velho sábio sabia que a vaidade, almejada pelo jovem, depende exclusivamente de observadores externos, pessoas que nos aplaudam e nos admiram. Mais valem os holofotes da notoriedade pública do que a reflexão madura colhida a partir da prática do recolhimento. Dotado de humildade intelectual, o velho sábio do conto de Borges, ciente da própria capacidade, sabia que a vaidade dependia apenas do mundo das aparências, ao passo que a auto-estima depende da nossa essência.

Essência tem a ver com dignidade. Dignidade que levou Paracelso a não operar o seu milagre educativo em nome da moeda miúda do sucesso. Para ele, o ensino estava voltado para “o refinamento do espírito” e não para o embrutecimento do corpo. Baseado nesses valores, o educador não teve a preocupação de alimentar o seu ego e o do jovem a partir da superexposição pirotécnica de seus feitos. O velho sábio percebeu que o rapaz estava em busca da glória monetária e dos clarins da fama como causa do aprendizado. O jovem desejava ser especial e único para atrair os olhares que o excitavam, ignorando aquela sensação íntima de bem-estar relacionada à auto-estima manifestada pelo exercício do autoconhecimento.

Investigando as entrelinhas do conto de Borges, podemos perceber que enquanto Paracelso procurava autoconhecimento, o jovem buscava reconhecimento. O velho sábio nos ensina que o processo educativo deve ser conduzido pela dignidade e estimulado pela nossa autêntica avaliação interna, pelo nosso exame de consciência. Antes de sabermos como fazer o milagre e, assim, atrair o olhar dos curiosos, como queria o jovem afobado, devemos saber o porquê das transformações operadas pelo conhecimento e pela sabedoria, levando em conta o enriquecimento da nossa interioridade, conforme ressalta Paracelso.

* Jornalista. Mestre em Estudos Literários/ Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor do curso de Comunicação e Marketing da Faculdade Promove de Sete Lagoas/MG

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