Busca no site da UFMG

Nº 1627 - Ano 35
29.09.2008

entrevistaEneida Maria de Souza


Trato impecável com a escrita

Itamar Rigueira Jr.

Começa nesta segunda-feira, dia 29, e vai até o dia 2 de outubro, na UFMG, o congresso internacional Centenário de dois imortais: Machado de Assis e Guimarães Rosa, que promete uma ampla reflexão sobre a obra dos dois escritores, apontados por muitos como os principais nomes da literatura brasileira. Em entrevista ao BOLETIM, a professora Eneida Maria de Souza, emérita da Universidade e pesquisadora do Acervo de Escritores Mineiros, aborda as diferenças e convergências entre eles.

Que pontos em comum e diferenças há entre as obras de Guimarães Rosa e Machado de Assis?

A escrita de Guimarães Rosa é muito diferente da de Machado, que é mais clássico, não usa tantos neologismos. O texto de Machado tem um lado muito pessimista, seus romances têm uma extraordinária relação com o trágico, mas com um humor muito refinado. O Guimarães Rosa não se fixa muito nas cidades e revitaliza principalmente a linguagem. Há em Guimarães um trânsito entre a cidade e o sertão, ele sai da temática urbana que foi muito forte nos modernistas, que falavam da São Paulo da modernização, das grandes mudanças urbanas. Um ponto em comum é o cuidado com a linguagem: de forma diferente, em ambos o trato com a escrita é impecável.

Como eles retratam suas épocas, o Brasil e o povo brasileiro?

Machado foi o grande cronista do Brasil republicano e escravista da passagem do século. E ele foi realmente cronista nos jornais, com textos mais metalinguísticos, baseados no que era publicado todos os dias. Fez um diagnóstico das mazelas brasileiras, com um senso de humor incrível, e até hoje é atual por causa disso. Já o Guimarães Rosa tem uma tendência de voltar para tempos anteriores. O próprio Grande sertão não se passa na época que ele estava vivendo. Ele trabalha com um Brasil povoado de coronéis e jagunços, e a passagem de cidadania para um país mais republicano. E, principalmente, com a vida simples, lírica, do sertão, com a descrição da natureza. Ele injeta uma visão filosófica, universal (“o sertão é o mundo”), que não se vincula só ao sertão brasileiro, tem relação com a literatura alemã, Goethe, o pacto com o Diabo. Ao mesmo tempo, é um sertão mágico, que ninguém ainda tinha desenvolvido.

Que obras e personagens sintetizam a trajetória literária dos dois?

Em Machado, Capitu é a grande personagem. A crítica não tem mais nada o que fazer, só fica pensando se ela traiu ou não, o que é uma grande bobagem. Quanto mais ambígua a obra literária, melhor. Não é romance policial, não é preciso saber quem matou. É um tema muito explorado pela literatura e pela arte, o da traição, do amor, do ciúme. Dom Casmurro conjuga sentimentos marcantes de um relacionamento amoroso. Tem também a ambigüidade em torno da figura do narrador, que suspeita da traição e dá o grande tom dramático. E no caso do Guimarães Rosa, o Grande Sertão e os seus dois personagens principais são sua grande marca. Riobaldo tem uma conversa com o suposto leitor, ele narra toda a história passada. Isso é comum no autor, nos contos sempre algo está sendo narrado, é uma história que já se passou, o que também põe a voz do narrador como suspeita. Em vários pontos, ele mesmo diz que não sabe se vai contar direito. E o tema do romance são as lutas e o amor recôndito; é uma das relações amorosas mais bem escritas da literatura brasileira.

Como se pode descrever a criação da linguagem em Guimarães Rosa, e qual o segredo para entendê-lo?

Sua linguagem tem o lado arcaico e o experimental, que vem da literatura do século 20, dos movimentos de vanguarda com os quais ele conviveu na Europa. Guimarães conhecia as rupturas, e o que torna sua linguagem mais sofisticada é que ele vai misturando as línguas. Não pode ser considerado só regionalista, como também sua língua não é só a portuguesa. Era um conhecedor de línguas estrangeiras e fazia questão de criar vocábulos a partir dessa Babel. Ele sofistica a fala do caboclo. No segredo da compreensão entra a questão mágica da linguagem, não é preciso entender tudo. Os primeiros livros são muito sonoros, com a aliteração, as consoantes repetidas. Ele se preocupa com o som dos vocábulos, e isso é muito sedutor, principalmente para o leitor acostumado com a literatura. Mas não é um autor que se lê facilmente. E a tradução é complicada. Basta dizer que, no final de sua vida, Guimarães Rosa gastava muito tempo trocando correspondência com seus tradutores para explicar quase tudo. Foram publicados livros em que ele dialoga com os tradutores, e são obras riquíssimas.

O que falta estudar nas obras e biografias dos dois?

O Machado já foi bastante analisado, há várias biografias, mas é claro que sempre aparece algo, porque a crítica vai sendo revitalizada a partir das leituras do presente. No caso do Guimarães, falta uma boa biografia. Faltam relatos, principalmente, sobre sua vida em Belo Horizonte, entre 1918 e 1930. Essa passagem é muito desconhecida. Sabe-se que ele não convivia com os escritores e intelectuais, não há registro de contato com os modernistas que vieram a Belo Horizonte em 1924. Seria fundamental também a passagem por Hamburgo. Quanto à sua obra, a proposta atual é estudar a questão da natureza e sua trajetória no sertão. Há teses sobre as cadernetas de trabalho e os lugares por onde ele passava.

Em que pé estão os estudos dos diários europeus de Guimarães?

Temos cópia de escritos da época em ele era vice-cônsul brasileiro em Hamburgo. Esse material é muito importante, porque é contemporâneo da ascensão do nazismo. Ele fez descrições interessantes sobre a perseguição aos judeus. Foi um dos únicos escritores brasileiros a vivenciar os horrores da guerra, e muito de perto. O diário traz uma visão interessante da cidade bombardeada e recortes de jornais em alemão sobre os ataques e outros assuntos. É um escrito da maior importância e deve ser publicado.