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Nº 1630 - Ano 35
20.10.2008

opiniao

Machado e Rosa, intérpretes do Brasil

Marcos Fabrício Lopes da Silva

Durante a abertura do Congresso Internacional Centenário de Dois Imortais: Machado de Assis e Guimarães Rosa, realizado recentemente na UFMG, o diretor e professor da Faculdade de Letras, Jacyntho José Lins Brandão, referiu-se a um curioso questionamento feito pelo pesquisador francês Jean-Michel Massa, a respeito dos critérios que levaram a Universidade a contemplar em um mesmo evento dois escritores com personalidades e projetos literários tão distintos. Infere-se deste episódio que a coincidência cronológica – em 2008, homenageiam-se Machado, nos 100 anos de sua morte, e Rosa, pelos 100 anos de seu nascimento – não se sustentaria como argumento para justificar a promoção de um congresso que abarcasse, em uma mesma oportunidade, os dois maiores expoentes da literatura brasileira.

Fora os apelos da marca centenária e da imortalidade que cercam as homenagens prestadas neste ano a Machado e Rosa, acredito que haja pontos de intersecção entre suas obras a justificar o evento promovido pela UFMG e a encorajar estudiosos a se aventurarem em uma compreensão conjunta das interpretações machadianas e rosianas acerca da condição humana em meio a composições tão complexas, como é o caso da realidade brasileira.

Em épocas distintas e com propostas ficcionais tão singulares, Machado e Rosa se encontram nesse vasto território brasileiro pelos caminhos de suas prosas. Para isso, faremos uma aproximação de dois de seus textos, Pai contra mãe, de Machado, e Duelo, de Rosa, para mostrar uma relação de similitude e recorrência de uma estrutura social brasileira. No primeiro caso, como essa estrutura se manifesta num momento determinante da configuração social escravocrata, e depois, no caso de Rosa, como ela ainda encontra ecos e se propaga na vida primitiva do sertão.

Os dois contos têm como eixo uma “caçada” humana. O texto de Machado retrata um momento do sistema social escravocrata em que a violência produzida pelas extremas diferenças com que são constituídos os pólos do dominador e do dominado gera um terceiro elemento, cuja dinâmica liga os dois extremos. Entre o dono de escravos e os escravos surge a intermediação do caçador de escravos. Estava formado o triângulo social instituído pelo sistema escravocrata, que, a partir daí, sofreu variações e atenuações, mas, de fato, nunca desapareceu. Por isso, ele pode ser flagrado, modificado e disfarçado, na violência plantada na paisagem sertaneja, quando Guimarães Rosa esgarça na tessitura de seu texto uma estrutura do tecido social desse sertão.

O núcleo do texto de Machado é a história de Cândido Neves, o similar simbólico do pegador de escravos, que, na formulação irônica do autor, foi um dos ofícios legados pela escravidão como instituição social. Por meio desse ofício, instituiu-se o papel do “homem livre”, o paradoxo sociológico assim explicado por Roberto Schwarz, em Ao vencedor as batatas: “Esquematizando, pode-se dizer que a colonização produziu, com base no monopólio da terra, três classes de população: o latifundiário, o escravo e o ‘homem livre’, na verdade dependente. [...] Nem proprietários nem proletários, seu acesso à vida social e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto, de um grande”.

Machado enreda em seu conto o dilema do personagem Candinho, puxado, por um lado, pela pressão das obrigações familiares – casa-se, nasce o filho, a mulher e a tia não dão conta do sustento, obrigando-o a um arranjo para não ver o filho entregue à Roda dos Enjeitados – e, de outro, movido pelo impulso da instabilidade nos empregos e o caráter malandro. Como síntese dessa antítese é que o personagem, no clímax do conto, a caminho da Roda, deixa o filho em uma farmácia, sai à caça da negra fugida Arminda e a devolve ao senhor da escrava. Assiste ao “espetáculo” do aborto da escrava, transforma a fúria do caçador em “fúria de amor”, recupera o filho deixado na “rua da Ajuda”, retorna à família com a recompensa, abençoando a fuga e consolando a consciência: “Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração”.

O apadrinhamento ou “mecanismo do favor” é a resultante desse processo social, cuja dinâmica, dialética, fica bem figurativizada nos vértices de um triângulo movente. Impulsionado pela força dos contrastes entre os vértices da representação do poder e o da total submissão a ele, surge, no terceiro, a síntese complexa do apadrinhamento, do homem livre, malandro ou afilhado, entre tantas possíveis configurações que, a partir daí, a sociedade brasileira gerou e a literatura recriou.

Esse mesmo triângulo, deslocado para o sertão de Guimarães Rosa, explica a solução irônica tramada no conto Duelo, que surpreende o personagem Turíbio Todo, levando-o à morte. O desdobramento do triângulo se dá porque as leis do Estado não chegam aos grotões sertanejos, onde ainda imperam os primitivos códigos de vingança e, a seu redor, as leis cavalheirescas de lealdade, transfiguradas em apadrinhamento.

A “caçada” se arma entre o capiau Turíbio Todo, que flagra o adultério da mulher com o ex-militar Cassiano Gomes e, ao tentar vingar-se, engana-se, matando o irmão do culpado. A partir daí, a alternância dos papéis de caça e caçador mobiliza e enriquece a narrativa com as estratégias e os lances de espertezas dos dois personagens, até que, consumido pela duração do “duelo” e o desgaste da doença cardíaca, Cassiano morre.
Pensando ter vencido a luta, Turíbio Todo inicia o retorno à sua terra e à sua mulher, quando é surpreendido e morto por Timpim Vinte-e-Um, vingando o compadre Cassiano, que o ajudou com dinheiro e salvou a vida de seu filho.

Com esse lance, completa-se o triângulo instaurado entre o ex-militar e a vítima de seu poder, que tenta vingar-se, mas é vingado pela lealdade do capiau Timpim ao finado padrinho e protetor. O homem livre, no ofício de caçador de escravos do conto de Machado, encontra eco nesse duelo sertanejo, em que o vínculo da dívida e o laço do apadrinhamento são tão fortes que movem o “mecanismo do favor”: da humildade e pobreza do pólo dos dominados, Timpim surpreende a todos deslocando-se para o vértice sintetizador dos opostos na pele de um justiceiro.

* Jornalista. Mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor do curso de Comunicação e Marketing da Faculdade Promove de Sete Lagoas/MG

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