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Nº 1639 - Ano 35
2.2.2009

O charme do canibal

Livro de professora da UFMG analisa o psicopata no cinema,
representado pelo fascinante Hannibal Lecter

Itamar Rigueira Jr.

foto: www.memorabilia4u.com
Anthony Hopkins ganhou o Oscar por sua atuação em O silêncio dos inocentes

Inteligente e charmoso foram alguns dos adjetivos utilizados por alunos da UFMG, entrevistados em uma pesquisa, para definir o inesquecível Hannibal Lecter, interpretado por Anthony Hopkins em O silêncio dos inocentes, filme de Jonathan Demme que estreou em 1991. O resultado da pesquisa é mais uma evidência do fascínio exercido pelo personagem – psicopata-canibal que ajuda a solucionar crimes semelhantes aos seus – sobre o público, tema da tese de doutorado (Unicamp, 2004) da cientista social Ana Lúcia Modesto, professora do departamento de Sociologia e Antropologia da UFMG. Um resumo atualizado desse trabalho transformou-se em livro produzido pela editora Argumentum e lançado no final de 2008.

Interessada pela atração das pessoas por seres monstruosos que habitam livros e telas, Ana Modesto resolveu estudar um caso típico do que chama de “horror real”, que nada tem de mitológico ou mágico. O monstro, nesse caso, não tem a aparência humana deformada. “O psicopata que se transforma em assassino serial é um ser que existe e que tememos, mas que pode agradar muito quando assistimos a suas aventuras nas telas”, explica a professora. “Pretendi estudar o fenômeno social que é o poder de fascinar de um homem tão perigoso”, acrescenta.

Com base, entre outras, na ideia de que o cinema americano pode ser analisado como linguagem que carrega conceitos, Ana Modesto escolheu o canibal de Demme e Hopkins, ganhadores do Oscar, como a definição de demônio moderno. Segundo ela, Lecter possui as características básicas de outros personagens-monstros – como a indiferença pelo outro e a seleção das vítimas –, mas também algumas incomuns, que poderiam ser explicadas sobretudo pelo fato de ser ele próprio um psiquiatra, além de um “mestre da linguagem”.

Psicanálise

Apoiada também em concepções da psicanálise, sobretudo no trabalho da franco-búlgara Julia Kristeva, a autora destaca o poder de sedução do personagem, capaz de levar alguém à morte ou à solução de um crime pelo diálogo (ele se torna peça fundamental para uma investigação da estagiária do FBI Clarice Starling, personagem interpretada por Jodie Foster, que também recebeu um Oscar pela sua atuação).

“Minha perspectiva, no entanto, é mais antropológica quando analiso a relação entre a fala e o distúrbio psicológico, sobretudo do ponto de vista de que falar é o oposto simbólico de comer o outro”, salienta a pesquisadora.

A adaptação para o cinema do best-seller The silence of the lambs, de Thomas Harris, é considerada por Ana Lúcia Modesto extremamente benfeita, e sua eficácia pode ser medida, segundo ela, pelos comentários e discussões que o filme inspira até hoje. Recursos como o da câmera subjetiva – o espectador vê Hannibal Lecter pelo olho de Clarice Starling – e o close, que intensifica a sensação de terror, aliam-se à opção pelos diálogos mais curtos que no romance, o que reforça a fala autoritária do psicopata, que trata o outro como inferior. “A utilização da linguagem cinematográfica foi muito bem-sucedida, e tem sequências inesquecíveis como aquela em que a investigadora mata o assassino numa sala escura”, lembra a cientista social.

O sucesso do filme presta-se à reflexão proposta no livro de Ana Lúcia Modesto. Ela busca as razões para que o público saia do cinema tão fascinado por um personagem que no dia-a-dia provocaria pavor. Segundo a pesquisadora, as contradições contemporâneas, as crises ética e de identidade e a convivência de diferentes tradições gerada pela globalização favorecem a confusão de limites e desejos e a identificação do indivíduo com um monstro da estirpe de Hannibal Lecter. “O monstro aparece como a figura simbólica da crise”, completa a professora da UFMG.

Livro: A fala e a fúria
Autora: Ana Lúcia Modesto
Editora Argumentum
2008, 159 páginas, R$ 30