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Nº 1693 - Ano 36
3.5.2010

opiniao

Ética, medicina e cidadania

Geraldo Luiz Moreira Guedes*

Nas últimas décadas, o mundo experimentou muitas novidades que geraram grandes mudanças de comportamento e inúmeras possibilidades. Na Medicina, o rápido desenvolvimento científico e tecnológico proporcionou não só avanços no enfrentamento de doenças como também grandes dilemas, particularmente no campo da Bioética.

Novidades nas estruturas que passaram a dar suporte ao exercício da medicina e à assistência à saúde atingiram níveis de tamanha complexidade a ponto de impor a presença de novos atores que passaram a compartilhar responsabilidades com os médicos, não só pelas razões quantitativas advindas da extensão ao acesso da população a bens e serviços de saúde, como também por questões qualitativas relacionadas às desigualdades sociais.

Certamente essas foram as motivações centrais que levaram o Conselho Federal de Medicina a buscar, de forma inédita junto com outros atores sociais, a revisão e elaboração de um novo instrumento que não só ampliasse as responsabilidades dos médicos frente a seus pacientes, mas contemplasse também a relação da medicina com o mundo contemporâneo.

O código anterior, editado em 1988, surgiu no mesmo momento político em que o Sistema Único de Saúde (SUS) começava a funcionar sob a égide de uma nova Constituição, portanto no bojo do processo de redemocratização e de consagração dos direitos individuais e sociais. Já o novo Código de Ética Médica, que entrou em vigor em abril deste ano, põe para os médicos, pacientes e o conjunto da sociedade novas questões e desafios que estimulam o exercício da cidadania.

A autonomia do paciente é ponto central no novo código. O reforço deste princípio dá ao paciente o direito de recusar ou escolher um tratamento, estabelecendo o equilíbrio entre o desejo do cidadão bem informado e a opinião do médico acerca de opções cientificamente validadas. Abre espaço para a superação de uma distorção histórica em que o paternalismo e o autoritarismo costumam ser a tônica na relação médico-paciente.

Deixa claro também o caráter antiético das ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis e obstinadas nos casos de doença incurável e terminal, devendo o médico oferecer todos os cuidados paliativos, levando sempre em conta a vontade do paciente ou a de seu representante legal.

Por outro lado, o novo código amplia e garante a independência profissional e científica do médico frente aos interesses mercantis, resguardando a ética e impondo-lhe limites claros na relação com o chamado complexo médico industrial. A vedação de interação com óticas e farmácias foi estendida à comercialização de medicamentos, órteses, próteses ou implantes de qualquer natureza.

Ficou expressamente vedada na procriação medicamente assistida a criação de seres humanos geneticamente modificados, embriões para investigação ou embriões com finalidades de escolha de sexo e eugenia. Não é permitido também intervir sobre o genoma humano com vistas a sua modificação, exceto na terapia gênica, excluindo-se qualquer ação em células germinativas que resulte na modificação genética da descendência.

A proibição do uso de placebo em pesquisas, quando há tratamento eficaz, é consoante com a posição manifestada em fóruns internacionais por médicos brasileiros que em diversas oportunidades foram firmemente contrários à modificação da norma internacional (Declaração de Helsinki) sobre o assunto.

A responsabilidade profissional, contida em seu artigo 1°, continua sendo a garantia ao direito do paciente de recorrer diante da suspeita de dano causado por ação ou omissão, quando imperícia, imprudência ou negligência por parte do médico ficar caracterizada. Outras responsabilidades não menos relevantes, como a obrigatoriedade de atender em setores de urgência e emergência, de não se ausentar de plantões ou até mesmo de prescrever e fazer anotações em prontuários de forma legível, foram reafirmadas e ampliadas.

O novo Código de Ética Médica, com seus 25 itens que definem os princípios fundamentais, as 10 normas diceológicas que estabelecem os direitos dos médicos e os 118 artigos que impõem responsabilidades, avança em relação ao anterior ao tirar o foco única e exclusivamente do médico, estabelecendo corresponsabilidades nas ações de saúde e propondo a interação da medicina com a sociedade.

Mas o novo código não pode ser visto como panaceia ou solução de todos os problemas da medicina. Ele só representará, de fato, um avanço se a sociedade apropriar-se dele e transformá-lo em mais um valioso instrumento de exercício da cidadania.

*Especialista em Clínica Médica e doutor em Saúde Coletiva pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP. Professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da UFMG e coordenador da disciplina Ética e Direito Médico

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