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Nº 1696 - Ano 36
24.5.2010

Concretismo maxakali

Pesquisa da Escola de Música sobre cantos indígenas dá origem a livros e DVDs

Fernanda Cristo

Mutum-de-penacho vejo
Mutum com saudade veio
Mutum-de-penacho vejo
Mutum saudade chamou

Mutum-de-penacho vejo
Mutum como outros veio
Mutum-de-penacho vejo
Mutum como outros veio

À primeira vista, o texto acima pode lembrar poesia concreta ou haicai, mas trata-se, na verdade, de um canto maxakali. Com letras que versam principalmente sobre a natureza, com sua vasta fauna e flora, 269 cantos como esse foram reunidos em dois livros publicados recentemente. Intitulados Cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex e Cantos e histórias do gavião-espírito, os volumes são resultado de pesquisa coordenada pela professora Rosângela Tugny, da Escola de Música da UFMG.

Durante oito anos, a equipe da pesquisadora visitou as terras indígenas do Pradinho e de Água Boa, no Nordeste de Minas Gerais, com o objetivo de reunir e traduzir cantos entoados durante rituais maxakalis. Rosângela conta que conheceu os índios em 2000, quando organizou evento para comemorar os 500 anos de descobrimento do Brasil. “Os maxakalis são um grupo diferenciado. Eles sempre se destacaram por essa aptidão musical. São conhecidos como o ‘o povo do canto’”, afirma.

Mas foi em 2002, quando começaram os debates que culminaram na criação do curso de licenciatura indígena, na Faculdade de Educação, que Tugny foi até a aldeia convidá-los. Logo nos primeiros encontros, ficou decidido que a pesquisa resultaria em um livro e que haveria tradução dos cantos. “Desde o começo a intenção era fazer um trabalho de coautoria, de colaboração, e não apenas uma pesquisa minha sobre eles”, ressalta Rosângela.

A pesquisadora explica que os maxakalis têm 11 grandes repertórios, que seriam como enciclopédias de música. Nos livros, apenas dois deles foram explorados: os cantos do gavião-espírito e do morcego-espírito. “Cada conjunto de cantos pertence a um repertório atribuído a uma origem espiritual”, esclarece Tugny. Segundo a professora, cada repertório usa léxico diferente, o que tornou ainda mais difícil o trabalho de tradução.
“São muitos cantos e eles abordam coisas que muitas vezes desconhecemos”, diz. Em um deles, por exemplo, são citadas mais de 30 espécies de abelhas. Para chegar a uma tradução precisa, Rosângela conta que foi necessário levar alguns índios ao ICB, para que pudessem apontar espécie por espécie. Os livros também trazem listas de pássaros, cobras e plantas.

In loco

Além das letras em maxakali e português, os livros trazem ilustrações dos próprios índios – representações pictóricas dos cantos – e DVDs com gravação de áudio dos rituais, com seis e 12 horas de duração. “Para gravar um canto indígena, temos que respeitar o contexto em que ele nasce, por isso fizemos questão de gravá-los durante os rituais, pois os índios entenderam que isso traria mais força para as gravações”, diz Rosângela.

Assim como a tradução das letras, gravar os cantos não foi tarefa fácil, uma vez que os “cantores” estavam, ao mesmo tempo, dançando e se deslocando pelo pátio da aldeia. No ritual do gavião, a equipe de alunos da Escola de Música passou 12 horas gravando sem parar; o material acabou aproveitado praticamente na íntegra. Já o ritual do morcego durou apenas seis horas. “A gente imagina o ritual como se fosse um concerto de música, com hora marcada para começar e terminar, mas é uma coisa mais difusa, é um ciclo”, constata Tugny.

O mais importante, avalia a professora, foi respeitar o tempo dos índios, para que todos da aldeia pudessem entender o que estava sendo feito. “Quando vinham a Belo Horizonte, às vezes eu fazia uma pergunta e eles ficavam a tarde inteira discutindo na língua deles, esqueciam que eu estava ali, esperando uma resposta”, lembra.

Ao lembrar que existem cerca de 180 línguas indígenas no país, Rosângela Tugny espera que o trabalho estimule outros pesquisadores a continuarem registrando e traduzindo cantos indígenas brasileiros. “Imagine a quantidade de poéticas ameríndias que não conhecemos, que nunca foram levadas ao público de forma consistente, com todo o trabalho de pesquisa que eles merecem”, questiona.