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Nº 1706 - Ano 36
16.8.2010

opiniao

Com açúcar, com afeto

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Estamos acostumados a opinar sobre os grandes direitos públicos, aqueles que figuram em códigos e constituições, fazendo parte de discursos políticos e promessas eleitorais. Fala-se do direito ao emprego, do direito à habitação, do direito à segurança, enfim, de todos aqueles direitos que podem figurar como reivindicações sociais de transparência inquestionável. Mas parece suspeito e até ridículo falar daqueles direitos da vida cotidiana que permanecem confinados à esfera do íntimo, sem que ninguém ouse pronunciar seus nomes nas reuniões em que se debatem com grandiloquência os problemas políticos da época. A esta categoria de direitos domésticos, relegados e vergonhosos, pertence o direito à ternura, relacionado a uma educação do gosto e da sensibilidade. Como bem disse o poeta amazonense Thiago de Mello, em Os Estatutos do Homem, artigo IX: “Fica permitido que o pão de cada dia/tenha no homem o sinal de seu suor./Mas que sobretudo tenha sempre/o quente sabor da ternura”.

O problema dos direitos humanos não pode continuar circunscrito à esfera do público, como uma repetição monótona das normas que devem ser acatadas tanto pelo Estado quanto pelos cidadãos. Sua presença, como temática candente do mundo contemporâneo, é, em princípio, produto de uma mudança na sensibilidade coletiva que afeta nossa maneira de entender o trabalho político e as relações amorosas, modulação afetiva que só de maneira secundária busca expressão nas estruturas legislativas.

A tradicional divisão entre o público e o privado revela, neste caso, seu caráter arbitrário, pois ao tratar-se da estética social – campo ao qual adscrevemos o direito à ternura – é impossível não transcender o umbral da ágora ou da rua para penetrar nas raízes afetivas, familiares e interpessoais, das quais se alimenta a ética cidadã. Nesse sentido, como são oportunos os versos libertários de Rita Lee, Roberto de Carvalho e Ezequiel Neves, na canção Vote em mim, de 1982: “Vou ser presidente do seu corpo/Governar, anarquizar/Minha plataforma é o prazer total/Isso é melhor e não faz mal, já disseram!/Faço comício no hospício/Jorro petróleo por qualquer orifício/E sem demagogia, por pura alegria/Quero o povo feliz!/Meu amor, por favor/Vote em mim/Prometo que se eu ganhar a eleição/Só vou dar poder ao seu coração”. Essa política do cotidiano seria justamente a da busca simultânea da liberdade e da liberação, isto é, alcançar a autonomia aliada ao prazer. Para exprimir espontaneamente a nossa originalidade, nosso potencial de vida, precisamos de corpos totalmente livres, disponíveis, desbloqueados. Ninguém garante sua espontaneidade corporal se não garantir a sua espontaneidade social.

Pensar dentro da lógica excludente do público e do privado é colocar-se numa perspectiva que desconhece a dimensão fundante do afetivo, como se a ação política nada tivesse a ver com as relações de poder e saber que se estabelecem na intimidade. É hora de superar uma proposta sobre os direitos humanos enunciada a partir da juridicidade visível dos macrodiscursos ordenadores do Estado e da nação, marco expositivo que não deixa espaço para abordar, em seu caráter de conflitos epistemológicos e performáticos, aspectos até agora relegados à sombra da dinâmica familiar e da vida privada.

O privado, constituído por pequenas rotinas assinaladas pela dinâmica afetiva, é precisamente o espaço que, entre telões, se manifesta o público. Ao separar, de maneira incisiva, uma esfera da outra, impedimos que a análise sobre o político e o social chegue até essas parcelas protegidas onde a ideologia se aninha com mais força. Com essa dicotomia asseguramos a impensabilidade de uma zona fundamental para a constituição dos sujeitos, ficando por isso mutilada a análise que possamos conseguir dos grandes acontecimentos políticos. Tudo é ordenado de tal forma que só o público apareça como fato relevante, ficando completamente separado da rede à qual se articula como acontecimento humano e cotidiano. O privado está por definição condenado ao esquecimento e ao anonimato.

Ao buscar uma articulação do público com o privado, da macropolítica dos planos estatais com a micropolítica da vida cotidiana, das análises magistrais da cultura com a microssociologia e a psicologia da intimidade, o que nos anima não é tanto iniciar uma luta pela consagração de um novo direito constitucional – que poderia muito bem permanecer como letra morta, sem cumprir--se na vida social, como já aconteceu tantas vezes na história – mas gerar novas perspectivas de análise que permitam entender problemas como a violência, a democracia ou a autogestão política e comunitária, a partir de um cenário em que são problematizadas as rotinas diárias. Entendendo o direito não como uma concessão de governantes dadivosos, mas como poder que regulamenta as relações humanas, podemos falar do poder da ternura a partir destas experiências, intranscendentes e anódinas ao que parece, que se revelam fundamentais para a construção do sujeito social e de sua estrutura ideológica e valorativa.

Abramo-nos a uma analítica da cultura e da interpessoalidade em que a política possa ser pensada a partir da intimidade, âmbito oculto ao olhar bisbilhoteiro que mostra a realidade a partir de um ângulo perceptivo e comunicativo no qual o thymós ou afetividade adquire uma importância tão grande ou maior do que aquela que atribuímos ao nous ou intelecto. Acende uma grande luz nesse sentido o poeta e professor da Faculdade de Letras da UFMG, José Américo Miranda, em Leitura silenciosa: “Já li seu corpo/com os olhos./Agora quero lê-lo/em Braille”. Inversão que supõe passar da vista como sendo ordenador da realidade ao tato como analisador privilegiado da proximidade.

* Jornalista formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG.

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