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Nº 1711 - Ano 36
20.9.2010

opiniao

Sobre E-LIBERDADE

André Machado*

“O homem é livre no momento
em que deseja sê-lo” (Voltaire)

Nos primeiros tempos da informática, na época dos mainframes (computadores gigantescos), lá pelos anos 60, software não tinha mais--valia. Era trocado de bom grado entre a turma que lidava com programação. A própria estrutura da internet, do modo que foi criada por Vinton Gray Cerf e Robert Kahn no fim daquela década, permitia o rápido crescimento da rede, pois o protocolo era simples e pronto para acoplar quem quisesse usá-lo. O próprio Cerf comentou isso comigo, quando lhe perguntei se tinha ideia se a internet seria o gigante que é hoje.

Naquela época, tecnologia era coisa de cientistas, não de consumo direto. Por isso, à medida que foi evoluindo e chegando mais perto de nós, a computação começou a ganhar contexto econômico. Quando se percebeu que o software era um bom negócio, especialmente depois da chegada do computador pessoal, o troca-troca entre programadores já não era prática recomendada, e começaram a aparecer os acordos de não violação de sigilo sobre programas. Assim, nos anos 80, foi preciso recuperar a liberdade do software, e um programador americano chamado Richard Stallman elaborou o conceito de software livre – isto é, que poderia ser livremente usado, distribuído, estudado e modificado por quem assim desejasse. Para garantir que ninguém se aproveitaria de software com essas características, Stallman criou o conceito de copyleft, isto é, “esquerdo autoral”, numa tradução mambembe. A ideia é que todo software licenciado através desse recurso tenha as citadas liberdades garantidas para os terceiros que desejem usá-lo – e, se estes fizerem modificações, elas também deverão ser franqueadas aos próximos usuários. E assim por diante. Esse conceito foi a base da chamada General Public License (GPL), licença que rege hoje boa parte dos programas livres.

A internet, num momento inicial, também ficou meio restrita à academia. Quando ela finalmente deslanchou, em meados dos anos 90, o modelo de uso era via navegador, e o download passou a imperar. O salto de conteúdo em conteúdo proporcionado pelo hipertexto levou a mais e mais conhecimento num esquema descentralizado, e logo veio o debate sobre os direitos autorais digitais ligados ao conteúdo baixado. Esse debate se acirrou com a chegada do Napster (que acabou fechado) e das redes de compartilhamento de arquivos. A banda larga só esquentou a discussão em torno do acesso à informação, difícil de controlar. A facilidade de buscas, que encontrou seu auge no Google, só incrementava a cizânia. A coisa chegou a um ponto em que mesmo aqueles que acreditavam que a internet deveria ser livre e regulada pelos próprios cibernautas perceberam que seria preciso alguma forma de governança – tema sobre o qual se debruçam hoje no mundo os IGFs (Internet Governance Forums).

As liberdades que temos com as receitas são exatamente as que podemos ter com o software livre

Mas as coisas, agora, parecem estar mudando novamente. Com os celulares virando smartphones e ganhando o poder de um desktop em sua interface, e a chegada dos e-readers e tablets como o iPad, o modelo da internet não é mais apenas o da navegação via browser. Esses aparelhos trazem seus respectivos “mercados de aplicativos” e vendem programinhas por preços acessíveis para suas plataformas (naturalmente, também há alternativas gratuitas). A abertura que antes havia está sendo rapidamente substituída por uma esperta indução dos hábitos dos consumidores, que, no afã de ficarem atualizados com as novas tecnologias, acabam não percebendo que seus novos sonhos portáteis de consumo podem se transformar em verdadeiras maquininhas de gastar dinheiro, ainda que a conta-gotas. Nada contra o mercado vender seu peixe. É que não se pode perder de vista o potencial de acesso à informação que sempre foi a razão de ser da grande rede. Em suma, o compartilhar, que foi a base da reinvenção do software livre, não pode morrer, seja que forma a internet tome.

Quando o movimento do software livre comemorou uma efeméride, anos atrás, telefonei para Stallman e ele me resumiu de maneira brilhante o conceito de compartilhamento, do ponto de vista do software livre: “Os programas são como receitas. Ambos são guias para executar uma tarefa. Você cozinha de vez em quando? Você usa receitas? Você não recebe receitas de seus amigos? E não copia as receitas para eles? Você não estuda a receita para ver se há algum ingrediente ruim para sua saúde ou de que você não goste? Você já não mudou uma receita? E de repente um amigo gostou de sua versão e a pediu, de modo que você a copiou para ele? Tais liberdades que temos com as receitas são exatamente as que podemos ter com o software livre. Agora, imagine um mundo onde seria proibido estudar uma receita, ou mudá--la, ou copiá-la para seus amigos. Este é o mundo do software proprietário”.

Da mesma forma, a internet não deve ser propriedade de ninguém. Se Cerf e Kahn não tivessem criado seu protocolo de forma aberta, e depois Berners-Lee e Cailiau não liberassem a interface web, hoje talvez não houvesse a rede como a conhecemos. Felizmente, a história foi outra. O modelo dos aplicativos pode ser até bom para a internet móvel, mas não deve substituir a magia do livre singrar pelo ciberespaço.

*Jornalista, poeta e músico. Repórter da revista Digital de O Globo

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