Busca no site da UFMG

Nº 1735 - Ano 37
25.04.2011

“O Direito não pode ignorar as biotecnologias”

Ana Maria Vieira

Entre 27 e 29 deste mês, o Núcleo de Estudos do Pensamento Contemporâneo da UFMG leva ao público novo esforço de pensar publicamente uma das questões mais polêmicas e complexas da atualidade: as repercussões das biotecnologias na chamada condição humana e na sociedade contemporânea. Em sua segunda edição, o evento põe agora o tema regulações em destaque, dando voz a cerca de 20 especialistas brasileiros e estrangeiros em seu debate (leia em www.fafich.ufmg.br/nepc).

Brunello Stancioli, professor da Faculdade de Direito da UFMG, é um dos convidados. Pesquisador de temas como pessoa natural, bioética, autonomia, melhoramentos humanos e direitos fundamentais, ele expôs parte das questões que circundam o evento nesta entrevista ao BOLETIM.

Jürgen Habermas já comentou que um primeiro sentido de perda humana veio com Galileu, que lhe retirou a noção geocêntrica. Veio depois Darwin e derrubou a ideia antropocêntrica na natureza. Agora, as biotecnologias questionam a fronteira do corpo. Como a área jurídica sente os reflexos da tecnociência, especialmente de sua relação com os direitos humanos?

No Brasil, a área é pouco sensível às novas tecnologias. A primeira reação é afastar-se delas, proibi-las ou limitá-las. Mas elas podem gerar resultados positivos. Uma pessoa com alguma doença genética pode, por exemplo, ter acesso à tecnologia reprodutiva, com seleção embrionária. Isso, claro, se tiver dinheiro. Mas seria interessante tornar essas tecnologias acessíveis a todos, talvez até sob a égide de um direito fundamental, derivado do Direito à Saúde. O medo no Brasil de enfrentar o problema poderá gerar atraso no desenvolvimento desses recursos e, na sequência, criar um hiato entre quem poderá ou não utilizá-los.

Essa é a visão predominante nos tribunais?

Esse sentimento é dos juristas de uma maneira geral. Mas o primeiro problema que vamos ter com essa visão é que os direitos humanos foram pensados para um dado conceito de humano. E agora estamos buscando novas fronteiras para além do Homo sapiens.

Para além da condição natural dele...

Mas o que é a condição natural humana? Tentamos demonstrar que é típico do homem agir sobre a realidade, transformar o ambiente, o outro ou a si mesmo. Isso nos distingue do ambiente, que é conformado. Podemos interferir nesse processo e decidir o que é ou não humano. No campo da tecnologia, há desde melhoramentos muito simples, como a vacina, até outros mais complexos. O chamado melhoramento humano pode reconformar a condição do Homo sapiens. Nesse sentido, sou entusiasta do bioprogresso, a busca do ser humano em superar o próprio limite.

O direito tem como referência a prudência nas discussões sobre interferências na genética humana, porém é mais permissivo para questões relativas à saúde. Parece-me que uma hora o Estado está dizendo que o corpo é do sujeito e na outra, que pertence a ele. Como extrair coerência dessa discussão?

Essa visão traz uma dicotomia equivocada entre o Estado e o sujeito. A autonomia privada só faz sentido perante a autonomia pública. As normas são produtos da autonomia pública dos seres envolvidos. Só haverá Estado democrático de direito se tivermos seres capazes de legislar para si mesmos: a leitura e a aplicação dos direitos fundamentais são feitas pelos próprios interessados. Reduzir o direito ao tribunal é como encapsular a física no laboratório. À medida que esses direitos fundamentais são produtos da autonomia pública e privada, aí estamos verdadeiramente numa sociedade democrática. Sobre a atitude de prudência, creio decorrer mais do desconhecimento e de certo temor do que propriamente de um sentido protetivo – que, se existe, é de cunho paternalista, de proteger a pessoa de si mesma.

O debate sobre o uso de células-tronco embrionárias e sua permissão no Brasil trouxeram avanços na maneira de a sociedade enquadrar a questão?

Acho que foi muito pequeno. Podemos ir muito além. Num certo sentido, a ação contrária veio de grupos religiosos. Considero que a pressão religiosa na esfera pública é o grande freio que temos nessas pesquisas. É legítimo que esses grupos se manifestem, mas não podem transformar uma moral particular numa ética de Estado. Há decisões judiciais sobre anencéfalos que chegam a argumentar que todos são criaturas de Deus e que o sofrimento purifica a mãe.

É um argumento válido para um Estado laico?

Na minha opinião, não. É lógico que o Estado laico não significa hostilidade à religião. Os vários grupos religiosos têm de conviver na esfera pública. Em última instância, a ética do Estado deve ser decidida pelos próprios interessados, que são todos os cidadãos.

A questão do consenso na ética lembra um pouco as argumentações de Habermas sobre a forma de obtê-la por meio da racionalidade comunicativa...

Não há a menor dúvida. Habermas caminhou, num certo sentido, na argumentação de racionalidade comunicativa; depois deu uma guinada conservadora, sobretudo quando escreveu O futuro da natureza humana. Ali, ele defende uma ideia de natureza humana estática, que é fortemente religiosa.

O excesso de individualismo na orientação dessa questão não levaria ao outro lado de eugenia definida pelo mercado?

Não. Vamos pensar sobre o que é eugenia. O Estatuto da Criança e do Adolescente preconiza que toda criança tem o direito de nascer saudável. Essa é uma “eugenia” posta sob a forma de lei. Agora, o terror ocorrido na Alemanha nazista levou a um conceito totalmente deturpado de eugenia. Achar que todos vão querer ter filhos loiros de olhos azuis é subestimar o poder de escolha do ser humano e sua capacidade de ser plural. O nascer saudável, que é a eugenia revisitada, demanda dos genitores uma postura ativa, uma predisposição de fazer de tudo ao seu alcance para que essa criança nasça sadia. Isso não implica redução de fenótipos ou etnias. É uma eugenia voltada para a autonomia – para que o filho possa se apropriar de sua herança genética e ter seu próprio projeto de vida boa.

[Versão ampliada da entrevista será publicada na seção Pesquisa e Inovação do Portal de Notícias da UFMG (www.ufmg.br) a partir do dia 28 de abril]