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Nº 1742 - Ano 37
13.6.2011

opiniao

O trabalhoso DOM de ser CRIANÇA

Leonardo José Alves de Freitas*

Trabalho, educação, dicionários... O que isso afinal tem a ver com o que eu faço ou deixo de fazer? Essas são questões que perpassam nossas vidas, sem nos darmos a devida conta. Bem lá atrás – quando por acaso duas células se fundiram e começaram a formar outros milhares, milhões (e um tanto mais) de células a fim de comporem um indivíduo humano, ou seja, cada um de nós –, iniciava-se não só mais uma vida, mas um indivíduo que teria um mundo todo pela frente, um Brasil a explorar. Um nascimento quase sempre em berço de madeira ou nem isso. O início de uma vida cheia de desafios não imaginados por muitos brasileirinhos em seus sonhos de criança.

Durante a infância, fase que marca o desenvolvimento orgânico, intelectual e cognitivo, ocorrem diversas mudanças na vida e no ser até a maturidade. E o que importa para uma criança é apenas ser criança e brincar, descobrir um mundo repleto de novidades. Coerente com essa ideia, o lúdico também envolve a educação, que deve ter um significado determinante para a formação desse infante cidadão. E onde entram os dicionários, os livros? Eles devem ser apresentados às crianças, que poderão descobrir mundos, palavras, significados, emoções, histórias, conhecimento e muita alegria. A cada palavra, um novo passo; a cada história, uma nova descoberta que vale a pena aprender.

Mas nem sempre descobertas e aprendizados são belos e formidáveis, como muitos de nós sabemos. Numerosos brasileirinhos já precisam entender e lidar com o significado da palavra trabalho, no dicionário da vida, deparando então, logo no início da jornada, com o fardo do labor, imposto muitas vezes pelos próprios progenitores. Então, qual a saída: trabalhar ou estudar? Ser criança ou ter ônus de adultos? Brincar ou deixar os brinquedos de lado? Sobreviver ou ir para a escola? Escolhas que muitos serão obrigados a fazer. E tais decisões serão determinantes na vida que se segue. São elas que farão com que mudanças pessoais e sociais possam ou não acontecer, tornando provavelmente a vida melhor ou pior.

Escolhas e oportunidades que muitos serão obrigados a fazer. E tais decisões serão determinantes na vida que se segue. São elas que farão com que mudanças pessoais e sociais possam ou não acontecer, tornando provavelmente a vida
melhor ou pior

No Brasil, as desigualdades ainda são muito grandes e os dados, preocupantes: mesmo com todos os avanços tecnológicos que vemos por aí, e com a queda do trabalho infantil, ainda existem milhares – senão milhões – de crianças tendo que trabalhar para se alimentar e/ou ajudar a família. O que está errado? Que fatores impedem que essa realidade mude? Afinal, as crianças são o futuro da nação, ou não? Alguns avanços ocorreram de tempos atrás até a atualidade, mas o que há para ser feito é grandioso. Vai de ações de cidadania até medidas governamentais.
Cada um realmente pode ser um transformador, agindo no âmbito de seu lar e chegando até a comunidade em que vive; por meio de denúncia das injustiças sociais, sem se conformar com as imposições da sociedade e, principalmente, contribuindo com pequenas atitudes para ensinar coisas ou mobilizar mais pessoas em prol da educação.

Certamente, há várias causas para esse quadro como a falta de emprego digno, baixa condição social e pouco nível de instrução dos pais. Além, é claro, de políticas públicas que pouco contribuem para a saída efetiva das classes mais pobres do nível da miséria. Voltamos ao caso do círculo vicioso, que gira, gira e mantém tudo no mesmo lugar, sem mudanças... Em muitos casos, o trabalho infantil pode ser o maior alento para a vida dos pequenos e de seus pais. Sem esse esforço, muitas dessas crianças deixariam até de fazer algo tão essencial que a maioria das pessoas realiza sem pensar, num piscar de olhos: o ato de comer.

Vale ressaltar que o papel da educação, a formal e a informal, é realmente surpreendente. Talvez a única forma de buscar a mudança desse quadro histórico e cíclico de miséria. Daí a importância dos livros, mesmo os infantis, das escolas, do apoio de toda a sociedade e do incentivo. De modo que haja mais condições que favoreçam e estimulem as crianças trabalhadoras a permanecer mais e mais no âmbito escolar, a serem amigas dos livros e, quiçá, enveredar pelas trilhas da educação ao longo de toda sua vida. Com isso, quem sabe possam concluir o ensino básico, cursar uma universidade, ajudar ainda mais a família e ter a certeza de que podem fazer a diferença e ir contra todas as cordas, amarras e o jugo que lhes eram impostos pela realidade antes sofrida.

De fato, as crianças que hoje sofrem com o peso e a responsabilidade do trabalho no Brasil, se descobrissem e fossem despertadas para os livros, para a escola, para o ensino-aprendizagem, perceberiam que a educação, sim, pode ser uma ferramenta para mudar a sua vida e a vida de tantas pessoas ao redor. Torçamos para que o trabalho infantil diminua cada vez mais, para que o espírito de criança permaneça, mesmo frente às mudanças de hábito trazidas pela globalização e pelo capitalismo, e que realmente nossas crianças sejam o futuro desta nação. Precisamos lembrar que é direito de toda criança encontrar, no dicionário, as palavras infância, liberdade, brincar, viver, estudar, ser, feliz. E, além de tudo, poder usá-las e entendê-las na prática.

*Mestrando do Programa de Pós-graduação em Biologia Celular do Instituto de Ciências Biológicas

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