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Nº 1744 - Ano 37
15.8.2011

Drama e felicidade de TRADUZIR

Em livro, Paul Ricoeur afirma que é preciso aceitar a impossibilidade da tradução perfeita

Itamar Rigueira Jr.

Ricoeur: tradução só pode ambicionar uma “equivalência presumida”

O desejo de traduzir não diz respeito apenas ao sonho de abolir as diferenças entre as línguas, por meio de uma racionalidade universal e ou de uma linguagem pura, mas está ligado à descoberta das potencialidades do idioma de partida e dos recursos da língua materna. Essa é uma das ideias que norteiam o livro Sobre a tradução, reunião de três ensaios do francês Paul Ricoeur (1913-2005). Recém-lançado pela Editora UFMG, a obra contém a produção do autor do final dos anos 1990.

Segundo Patrícia Lavelle, tradutora e autora do prefácio de Sobre a tradução, “embora Ricoeur tenha realizado na juventude importante trabalho de tradução, o tema surge em sua obra tardia, num estudo anterior sobre a Bíblia, no qual se interessa pela relação entre tradução e interpretação”. Pós-doutoranda na fundação que detém o arquivo e a biblioteca de Ricoeur, ela comenta em sua apresentação que o autor deixa de lado uma filosofia da tradução que oscila entre a tese de sua impossibilidade teórica e a constatação de sua prática efetiva, para pensá-la como “resposta construtiva ao desafio representado pela diversidade das línguas”.

Com referências a Platão, Freud, Benjamin e Derrida, Paul Ricoeur reflete sobre aspectos como o papel do tradutor, que se coloca entre o estrangeiro – a obra, o autor, sua língua – e o leitor. Em “Desafio e felicidade da tradução” – primeiro texto do livro, originado de discurso pronunciado na Alemanha, em 1997 –, ele defende que o tradutor encontra, antes mesmo de começar, uma resistência crucial. “Lapsos de intraduzibilidade dispersos no texto fazem da tradução um drama, e da vontade de traduzir, uma aposta”, escreve Ricoeur.

De acordo com ele, a tradução de obras poéticas oferece a “dificuldade maior da união inseparável do sentido e da sonoridade, do significado e do significante”. Mas traduzir textos filosóficos é igualmente complicado porque os campos semânticos não podem ser superpostos de uma língua para outra, e as sintaxes não são equivalentes, a construção das frases não remete às mesmas heranças culturais. O filósofo francês diz que é preciso “renunciar ao ideal da tradução perfeita, aceitar a diferença incontornável do próprio e do estrangeiro”. A felicidade de traduzir vem do luto da tradução absoluta, vem do que ele chama de “hospitalidade linguística”, marcada pelo “prazer de receber em casa a palavra do estrangeiro”.

Fidelidade e traição

Adiante, em “O paradigma da tradução” – publicado na revista Esprit, em 1999 –, Paul Ricoeur propõe abandonar a alternativa traduzível versus intraduzível, que define como teórica, em favor de uma outra, que é prática: fidelidade versus traição. Antes, ele cita o mito de Babel e Hannah Arendt para sustentar que “a tradução é uma tarefa, no sentido da coisa a fazer para que a ação humana possa simplesmente continuar”. E ressalta que, para além da necessidade e da utilidade da tradução, há algo mais tenaz e profundo, que é o desejo de traduzir.

O autor se pergunta por que esse desejo deve pagar o preço do dilema entre fidelidade e traição. A razão disso, ele sustenta, é não haver critério absoluto de qualidade. Para ele, uma boa tradução só pode ambicionar uma “equivalência presumida, sem identidade”. E os dilemas da tradução, de acordo com Ricoeur, se apresentam também no interior de um idioma. Assim como o tradutor de língua estrangeira, estamos sempre tentando dizer a mesma coisa de outro modo, para explicar ou desdobrar um argumento. Ele lembra que, como a descrição completa é impossível, restam pontos de vista, visões parciais do mundo. “É por isso que não terminamos nunca de nos explicar a outrem que não vê as coisas sob o mesmo ângulo que nós”, ele afirma.

Enfim, para Ricoeur, a tradução, “operação de risco sempre em busca de sua teoria”, simplesmente existe – e é assim que “o tradutor ultrapassa o obstáculo da intraduzibilidade de princípio de uma língua a outra”.

Livro: Sobre a tradução
De Paul Ricoeur
Tradução e prefácio de Patricia Lavelle
Editora UFMG
71 páginas / R$ 24 (preço sugerido)