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Nº 1775 - Ano 38
14.5.2012

entrevits

Sem rótulos

Gabriella Praça

Quando o escritor trans-homem João W. Nery fez cirurgia para mudança de sexo, em 1977, o general Ernesto Geisel presidia o país. O procedimento era proibido por lei, e João tornou-se, clandestinamente, o primeiro transexual brasileiro a passar pela cirurgia de adequação do sexo feminino para o masculino. Como a troca de nome no documento de identidade por meios legais era quase uma utopia, ele compareceu a um cartório alegando que nunca havia sido registrado. A nova identidade acarretou a perda de todo o histórico escolar e acadêmico de João, que, na época, aos 27 anos de idade, cursava mestrado em psicologia e ministrava aulas em três universidades no Rio de Janeiro. Formalmente analfabeto, ele passou a exercer atividades de pedreiro, pintor e vendedor. Recentemente, Nery decidiu contar sua história no livro Viagem solitária: memórias de um transexual trinta anos depois. A obra foi lançada em Belo Horizonte no último dia 6, durante o 7º Encontro de Travestis e Transexuais da Região Sudeste, realizado na UFMG. Em entrevista ao BOLETIM, o escritor analisa a situação dos transexuais no Brasil e questiona os estereótipos que permeiam as questões de gênero.

Você fez cirurgia para mudança de sexo 20 anos antes da legalização desse procedimento no Brasil. O que mudou de lá para cá em relação ao reconhecimento dos direitos individuais?

Em primeiro lugar, com a cirurgia legalizada, é possível operar-se gratuitamente pelo SUS, embora apenas em quatro cidades [Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Goiânia]. A fila de espera é imensa, e a equipe responsável, muitas vezes, manifesta sinais de preconceito no atendimento aos transexuais. Outro problema é o direito à troca de identidade, só conferido a quem faz a operação. Muitos transexuais optam pela cirurgia só para mudarem o nome em seus documentos e serem aceitos pela sociedade.

A transexualidade ainda é considerada uma doença mental...

É o chamado “transtorno de identidade de gênero” no código internacional de doenças. Para a ciência, somos doentes mentais. As normas são determinadas a partir da heterossexualidade, e aquilo que foge a esse enquadramento é considerado patológico. Essa é uma interpretação incorporada até pelos profissionais responsáveis por diagnosticar a condição do paciente que procura a cirurgia, o que o leva a construir uma caricatura de si mesmo para obter o laudo. Segundo as normas, quem é do gênero feminino tem que vestir rosa, cruzar as pernas, usar maquiagem e fazer todas essas coisas que, na verdade, não definem mulher alguma. Se um trans-homem procura ajuda médica e diz que seu gênero é masculino tem que se sentar de perna aberta, coçar o saco e escarrar no chão, porque, se for um homem delicado e se recusar a fazer essa palhaçada, não recebe o laudo do psiquiatra.

Vocês são obrigados a aderir a um modelo de gênero...

Isso você vai encontrar, também, dentro do próprio movimento LGBT. O gay politicamente correto é aquele que não desmunheca, que quer se casar, ter filhos e fazer tudo igualzinho a um hétero. Não tenho nada contra isso, mas acho que está na hora de começarmos a questionar o modelo heterossexual, que é uma construção, assim como o homossexual.

Você costuma dizer que a primeira cirurgia acontece no nascimento, quando a criança já vem ao mundo com nome, enxoval e brinquedos definidos pelo gênero...

Sim, todos se submetem a esta primeira cirurgia. Já pela segunda, que é a adequação sexual, nem todo transexual passa – aliás, é um mito a ideia de que o transexual é o cara que daria tudo para se operar, pois há muitos que conseguem conviver com seu próprio corpo.

Como criou seu filho?

Ele nasceu menino, mas não o coloquei na “caixinha” na qual a maioria das pessoas é enquadrada. Dei uma boneca para ele brincar, para que ele aprendesse a ser um pai carinhoso. Não o ensinei a gostar de futebol porque eu mesmo não gosto – e ele foi marginalizado por isso na escola, pois, no mundo masculino, homem que não gosta de futebol é “veado”. Ensinei meu filho a chorar, a falar sobre suas emoções, discutir a relação e fazer tudo que considero positivo no dito “mundo feminino”. Ele sabe da minha história desde os 13 anos e, hoje, é meu grande amigo, conversamos abertamente.