Revista Diversa

Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 5 - nº. 11 - Maio de 2007

Artigo

Sorriso franco no rostinho encantador

Silviano Santiago
Graduou-se em Letras Neolatinas na Faculdade Filosofia, Ciências e Letras da UMG, em 1959

“É a única faculdade do mundo que tem 18 andares de porão e cinema comercial próprio”, disse alguém e a frase virou lugar-comum entre os jovens universitários. Antes de se transferir para o prédio do bairro de Santo Antônio, por muitos anos, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras ocupou dois andares e meio do Edifício Acaiaca. Era locatária do 19º, do 20º e da metade do 21º. A outra metade era ocupada por uma empresa comercial, que tinha os escritórios guardados atrás de uma porta de ferro batido. Não acredito que o estranho locatário estivesse previsto na planta desenhada por Luiz Pinto Coelho, formado na primeira turma da Escola de Arquitetura.

Era então, e por assim dizer, uma faculdade elevada, tão elevada quanto os jardins suspensos da Babilônia. Para lá subir, bastava entrar na fila do elevador. Descer de lá era mais complicado. Esperava- se tanto quanto num consultório de dentista. Subia-se às sete ou às oito da manhã, sonolento. Descia-se às 11h ou ao meio-dia, estômago vazio e cabeça cheia. Havia que ter cuidado com os dezminutos- antes. Antes das oito, nove, dez e onze. Soava o sinal de intervalo. A campainha era incômoda e a zoeira, insuportável. Engarrafamento diante da sala oito e à porta da secretaria – o bebedouro público. Também na cantina, onde se tomava o café dos três Fs.

A quem saía do elevador, a nossa Faculdade se assemelhava a um corredor. Um corredor de hotel, que dava acesso a sucessivas e numerosas salas de aula. Do corredor, era impossível apreender o que se ensinava lá dentro. Professor e alunos reunidos na sala, fechava-se a porta para evitar o burburinho dos passantes e, em seguida, fechavam-se as janelas por causa das buzinas da Avenida Afonso Pena e das rajadas de vento e chuva. O universitário era cultivado numa estufa.

Ao escutar a música vinda da radiola e o pingue-pongue das bolinhas de celulóide, não se devia pensar no Conservatório ou no Salão Recreativo do Atlético. À frente, a porta do Diretório Acadêmico, o DA. Lá dentro, ao lado dos arquivos de aço e dos tabuleiros de dama e de xadrez, tronava uma imponente cadeira de barbeiro. Corte de cabelo gratuito para os rapazes. Demagogia ou sexismo?

Observadas as paredes do corredor, lá estava farto material para uma colagem surrealista. Os olhos iam dum cartaz que apresentava flores e suas divisões para outro com o corpo humano, seus ossos. Enxergavam animais empalhados ao lado dum affiche da Place de la Concorde, em Paris, ao lado de cartazes que ilustravam as várias etnias indígenas no mapa do Brasil. Em desenhos didáticos, aprendiam sobre a flutuação dos corpos sólidos e, num quadro com silogismos, se adentravam pela lógica e, ao final de todos os corredores, viam, por detrás do vidro dum belo armário de peroba, um esqueleto branco e magro, devidamente dependurado num cabide.

Se você, anônima e fantasmagoricamente, fosse de recinto em recinto, escutaria desde o grego das comédias de Plauto até a última gíria do morro carioca. Sem falar no indo-europeu, que por lá transitava na boca dos professores de Latim. A língua italiana e a francesa davam os braços. Sofistas e existencialistas se entendiam. Matemáticos e físicos brigavam. História e geografia desquitavam-se. E a Botânica, altiva e orgulhosa, com sotaque estrangeiro e muitas verbas, olhava do vigésimo andar como se fosse dona do pedaço.

Por falar em olhar, se fosse o caso de apreciar a paisagem do antigo Curral d’El Rei do alto do Acaiaca, havia que dar uma esticada até o salão nobre da Faculdade. De lá, tinha-se uma belíssima panorâmica do entorno. À frente e mais abaixo, destacavam- se a Igreja de São José, o relógio e as majestosas escadarias. Belíssimas fotos foram tiradas de lá.

Mas o que destacava a Faculdade de Filosofia das outras era o sorriso feminino. As moças eram modernas, com vestidos e penteados up to date. Não se vestiam com o azul e branco das normalistas, mas destas – como na canção de Benedito Lacerda e David Nasser, popularizada na voz de Nélson Gonçalves – traziam o “sorriso franco no rostinho encantador”. Sorrisos e mais sorrisos, abertos, inteligentes, poliglotas, abstratos, mecânicos, físicos, botânicos, matemáticos, filosóficos, químicos... Com a arma do sorriso franco no rostinho encantador, combatiam o sexismo do Diretório Acadêmico e do Diretório Central dos Estudantes (DCE) e re-inauguravam o Brasil.

Acervo Fafich/UFMG
A professora Maria Luíza Ramos diante da banca do concurso para livre-docência em literatura brasileira na Faculdade de Filosofia (1958)
A professora Maria Luíza Ramos diante da banca do concurso para livre-docência em literatura brasileira na Faculdade de Filosofia (1958)
Diversa - Revista da Universidade Federal de Minas Gerais - Ano 6 - nº. 11 - maio de 2007