Revista Diversa

Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 5 - nº. 11 - Maio de 2007

Fundação

Sonho universitário uniu povo e elites

Há 80 anos, o presidente de Minas, Antônio Carlos, assinava a lei que criou a então UMG

Dizem que a fotografia é um instantâneo da realidade. No caso da criação da Universidasde de Minas Gerais (UMG), em 7 de setembro de 1927, esse instantâneo está materializado em outro suporte artístico: a pintura. Num óleo sobre tela de 2,50m X 1,80m, hoje instalado no prédio da Biblioteca Universitária, o pintor Gentil Garcez traçou um retrato único da aliança que se formou em torno da instalação da primeira universidade do Estado, a segunda do Brasil.

Em primeiro plano, sentado diante da mesa, o então presidente de Minas (na época, não se usava o termo “governador”), Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, sanciona o projeto enviado por ele mesmo ao Parlamento Mineiro, autorizando a criação da Instituição. Em torno dele, no Palácio da Liberdade, políticos, professores e intelectuais presenciam o momento histórico.

Algo que o quadro não mostra, no entanto, marcaria para sempre a trajetória da, hoje, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Na tela, estão retratados homens da elite política e intelectual do Estado. Só que o projeto de criação de uma universidade em solo mineiro era de toda a sociedade. Prova disso foi o entusiasmo com que a novidade foi recebida, inclusive por parte dos estudantes e da população, segundo relatam jornais da época. A fundação da UMG era a concretização de um sonho antigo. Alguns situam o nascimento da idéia ainda no século XVIII, durante a Inconfidência Mineira. Não há documentos que comprovem o plano dos inconfidentes de instalar uma universidade no país. Entretanto, a tradição oral preservou, geração após geração, a convicção de que eles pretendiam criar a instituição na antiga Vila Rica, hoje Ouro Preto.

O sonho transformou-se em realidade em um momento especial, não só para Belo Horizonte e Minas Gerais, mas também para todo o país, na avaliação da historiadora Maria Efigênia Lage de Resende, especialista na história da UFMG. Na década de 20 do século passado, o Brasil vivia um período de efervescência social e intelectual. A historiadora lembra que, em 1922, ocorreu a Semana de Arte Moderna, em São Paulo, marco da cultura brasileira que influenciou profundamente a intelectualidade mineira. Exemplo disto é a publicação, pelos modernistas mineiros, de A Revista em 1925 e 1926. Entre eles, destacava-se o poeta Carlos Drummond de Andrade.

Ainda nos mesmos anos 1920, mais precisamente em 1924, Minas recebeu a visita dos modernistas de São Paulo, Mário de Andrade à frente. Eles vieram ao Estado conhecer, in loco, o patrimônio histórico local e defender sua preservação. Também datam dessa década a fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o surgimento do movimento Escola Nova, que revolucionou a educação brasileira. No centro de toda essa agitação cultural, política e intelectual, estavam implícitas, de acordo com Maria Efigênia Lage de Resende, as perguntas: “Que país é este?” “Que povo é este?”. Nesse contexto, a Universidade era vista como o caminho para a formação de quadros que pudessem colocar o Estado e o País no rumo do tão almejado desenvolvimento. “O fundamental [no projeto de criação da UMG] está associado à busca de formação de quadros regionais, de uma massa crítica de profissionais, capazes de gerir o próprio Estado”, afirma a historiadora.

Civilização e progresso A cena retratada no quadro de Gentil Garcez faz referência à data de 7 de setembro de 1927, aniversário de 105 anos da Independência do Brasil e dia escolhido pelo presidente do Estado, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, para sancionar o projeto de criação da Universidade de Minas Gerais. Por isso, a data entrou para a posteridade como a da fundação da UFMG.

Um pouco antes, em 11 de agosto, Antônio Carlos enviara ao Congresso Mineiro (nome antigo da atual Assembléia Legislativa) o Projeto de Lei 19, que autorizava a criação da Universidade. Seu antecessor, Fernando de Melo Viana, havia feito o mesmo em 1925, mas a proposta não chegou a ser votada.

Neste trecho da mensagem do presidente Antônio Carlos aos parlamentares, fica claro o espírito da época: “Com esta minha iniciativa, creio ir ao encontro de uma das imposições da consciência mineira, qual a da existência eficiente e prosperidade segura de institutos que, voltados ao ensino superior, estejam na altura das aspirações civilizadoras e progressistas do povo de Minas Gerais”. A rápida tramitação do projeto no Congresso Mineiro demonstra o apoio de que desfrutava a idéia de se criar a Universidade. Em menos de dois meses, ele estava de volta ao Palácio da Liberdade, para ser sancionado e transformado na Lei 956.

Três dias após a sanção, em 10 de setembro de 1927, Antônio Carlos nomeou o primeiro reitor da UMG. Naquele momento, entra em cena o protagonista dos primeiros anos da trajetória da Universidade. O escolhido foi o professor Francisco Mendes Pimentel, então diretor da Faculdade de Direito. Homem de posições firmes e intelectual brilhante, Mendes Pimentel recebeu apoio entusiasmado das congregações das quatro escolas fundadoras da UMG: Faculdade de Direito, Escola de Odontologia, Faculdade de Medicina e Escola de Engenharia.

Ele tomou posse em 15 de setembro, numa solenidade realizada no Salão Nobre da Faculdade de Direito, na Praça da República, hoje Praça Afonso Arinos, no Centro de Belo Horizonte. Foi lá a primeira sede da Reitoria. Nas primeiras linhas do discurso de posse, Mendes Pimentel deixou a marca de sua retórica e de sua personalidade: “Eu vos digo em pura verdade que não me surpreendeu a escolha de meu nome para primeiro reitor da Universidade de Minas Gerais, e que eu contava com esta manifestação de apoio do professorado superior da Capital – de tanto que eu a desejava.” Em seguida, ele faz menção a tentativas frustradas de instalação de uma universidade no Estado e elogia o presidente Antônio Carlos, que participou da posse, por dar a um docente, justamente o mais antigo, a tarefa de comandar a UMG.

No dia 22 de setembro, decreto do governo estadual traz o primeiro regulamento da UMG, elaborado pelo mesmo Mendes Pimentel, com conceitos avançados para a época. Em 1930, algumas alterações são feitas, mas a idéia central permanece. No livro Universidade Federal de Minas Gerais – Projeto Intelectual e Político, o professor Fernando Correia Dias escreve que o “regulamento cristaliza a concepção de universidade dos fundadores da UMG. A instituição era livre, amplamente autônoma, democrática no acesso de professores e alunos ao Conselho Universitário, com um compromisso de honra de atender aos interesses públicos de Minas e vinculada estreitamente à cultura brasileira e ao seu desenvolvimento”. Esse foi o espírito que presidiu a criação da UFMG.

Reprodução/Foca Lisboa
Pintura a óleo de Gentil Garcez
Pintura a óleo de Gentil Garcez

Tradição inventada

O quadro a óleo que retrata a fundação da UMG tem uma história curiosa. A solenidade de assinatura da Lei que criou a Universidade aconteceu de fato e contou com a presença de todos os retratados, mas a disposição dos personagens na tela é fruto da imaginação do pintor Gentil Garcez.

A pintura foi produzida 25 anos depois, em 1952, para as comemorações do jubileu de prata da Universidade. Na opinião da historiadora Maria Efigênia Lage de Resende, o quadro materializa o esforço de “invenção da tradição” empreendido pela UFMG. Com a federalização, em 1949, surge, na Universidade, a necessidade de contar a história pregressa, que tem como marco inicial a solenidade de 7 de setembro de 1927, no Palácio da Liberdade.

A primeira em continuidade

Apesar de ter sido a segunda universidade criada no Brasil, a UFMG pode ser considerada a mais antiga em termos de continuidade. A pioneira foi a Universidade do Rio de Janeiro (depois, chamada de Universidade do Brasil e, hoje, Universidade Federal do Rio de Janeiro), criada às pressas, em 1920, para a concessão do título de Doutor Honoris Causa ao rei da Bélgica, Alberto I, que visitava o país. No entanto, ela só começou a funcionar, de fato, em 1937. A Universidade de São Paulo (USP) foi fundada em 1934.

Um homem que não abria mão de suas idéias

Reprodução/Foca Lisboa
Reitor Franscisco Mendes Pimentel (1927-1930)
Reitor Francisco Mendes Pimentel
(1927-1930)

Francisco Mendes Pimentel, primeiro reitor da UFMG, esteve à frente de seu tempo. Nascido em 20 de janeiro de 1869, no Rio de Janeiro, foi um intelectual brilhante, com atuação de destaque em áreas como educação, direito e política. Ele soube, como poucos, reconhecer e representar as preocupações e demandas da sociedade de então, mas com idéias avançadas para a época. Ao mesmo tempo, foi um homem inflexível e apaixonado por seus projetos. Mendes Pimentel não abria mão de suas convicções e, por isso, chocou-se, mais de uma vez, com a mentalidade vigente.

O melhor exemplo da personalidade de Mendes Pimentel talvez seja o episódio de sua passagem pela política. Vivendo em Minas desde a infância, ele foi responsável pela criação do novo Partido Republicano Mineiro (PRM), em moldes liberais e mais avançados que a legenda homônima dos tempos do Império. Em 1894, elegeu-se deputado estadual. No Legislativo mineiro, dedicou-se sobretudo à Educação e foi autor do projeto que reorganizou o ensino profissional no Estado. Em 1897, tornou-se deputado federal, também com atuação destacada na discussão de temas educacionais, mas renunciou ao mandato no ano seguinte e encerrou, de forma precoce, a carreira política. Desiludiu- se ao perceber que seu PRM estava sob a influência de coronéis e de oligarquias mineiras, com suas práticas nada democráticas. Sua paixão pela educacão, no entanto, acompanhou-o a vida inteira. “Mendes Pimentel era um pedagogo por excelência”, afirma a historiadora Maria Efigênia Lage de Resende.

Pedras, ovos e tragédia O fim da relação de Mendes Pimentel com a UMG é mais um exemplo de sua personalidade, desta vez com contornos trágicos. Em novembro de 1930, o governo provisório de Getúlio Vargas determinou, em decreto, que os estudantes de cursos superiores fossem aprovados sem exames finais, desde que tivessem freqüentado mais da metade das aulas. O texto não trazia justificativa, mas comentava-se, na época, que o motivo eram os transtornos provocados pela Revolução de 30. Em nome da autonomia da Universidade, o reitor Mendes Pimentel não concordou com a medida e submeteu-a, em 18 de novembro, ao Conselho Universitário, reunido no prédio da Faculdade de Direito.

A sessão do Conselho foi tumultuada pelo grande número de estudantes que compareceu ao local, para pressionar os conselheiros a aceitar o Decreto de Vargas. O órgão, no entanto, optou por manter a autonomia da Universidade e rejeitou a medida, o que deu início a um quebra-quebra. O próprio Mendes Pimentel foi atingido na cabeça por uma pedra e um ovo atirados por estudantes. O tumulto terminou em tiroteio, no qual foi ferido o aluno de medicina José Ferreira Vianna. O inquérito policial concluiu que o provável autor do disparo fora Roberto, filho de Mendes Pimentel. Internado em estado grave, Vianna morreu no dia seguinte. Desgostoso com o episódio, Mendes Pimentel renunciou ao cargo de Reitor. Em 1931, voltou para o Rio de Janeiro e nunca mais pôs os pés em Belo Horizonte. Até morrer, em 30 de agosto de 1957, aos 88 anos de idade, ocupou, no Rio, alguns cargos importantes, como o de árbitro brasileiro na Corte Permanente de Arbitragem, em Haia, na Holanda.

Além da atuação como Reitor nos primeiros anos da UMG e da defesa apaixonada da autonomia universitária, Mendes Pimentel deixou como legado a criação da Fundação Afonso Pena, com o objetivo de oferecer assistência aos estudantes. Hoje, em sua homenagem, a entidade tem o nome de Fundação Universitária Mendes Pimentel (Fump) e é responsável pela gestão das moradias estudantis e pelo atendimento a alunos carentes da UFMG.

Acervo Projeto UFMG: Memória e História
Faculdade Livre de Direito, em Ouro Preto (década de 1890)
Faculdade Livre de Direito,
em Ouro Preto (década de 1890)
Coleção Memória Intelectual: BU/UFMG
Escola Livre de Engenharia, na Praça da Estação, atual Centro Cultural UFMG
Escola Livre de Engenharia, na Praça
da Estação, atual Centro Cultural UFMG

Na origem, um quarteto

Diferentemente do que algumas fontes registram, a UMG não era uma universidade estadual. Embora criada a partir de projeto do governo mineiro e beneficiária de subvenções estaduais, era uma instituição “livre”, o que, na época, era sinônimo de instituição privada. A Universidade tinha autonomia administrativa e didática em relação ao governo e seus funcionários não eram servidores do Estado. Essa situação mudou em 1949, com a federalização. A sigla UFMG foi adotada em 1965.

A UMG foi criada pela reunião de quatro escolas de nível superior. A mais antiga delas é a Faculdade de Direito, fundada em 1892, em Ouro Preto, e transferida para a nova capital Belo Horizonte, em 1898. As outras três são a Escola de Odontologia, criada em 1907, a Faculdade de Medicina, em 1911, e a Escola de Engenharia, também de 1911. No mesmo ano, o curso de Farmácia é incorporado à Escola de Odontologia.

Diversos episódios marcaram a vida dessas instituições no período pré-UMG. Um dos mais importantes foi a atuação da Faculdade de Medicina durante a epidemia de gripe espanhola, em 1918, em Belo Horizonte. Numa demonstração da importância da Escola na vida da cidade, as aulas foram interrompidas por dois meses – em outubro e novembro – e as salas, transformadas em enfermaria para atender os doentes. Professores e alunos engajaram-se no enfrentamento da doença.

Acervo Faculdade de Odontologia/UFMG
Escola Livre de Odontologia, Praça da Liberdade (1913)
Escola Livre de Odontologia, Praça
da Liberdade (1913)
Arquivo público da cidade de Belo Horizonte
Faculdade de Medicina, Edifício Thibau, na avenida Afonso Pena, esquina de rua Espírito Santo (1912)
Faculdade de Medicina, Edifício Thibau, na avenida Afonso Pena, esquina de rua Espírito Santo (1912)
Diversa - Revista da Universidade Federal de Minas Gerais - Ano 6 - nº. 11 - maio de 2007