Revista Diversa

Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 5 - nº. 11 - Maio de 2007

Política

História de resistência

Durante o regime militar, UFMG destacou-se por defender autonomia político-acadêmica

Era 5 de outubro de 1968 e o regime militar instalado no Brasil quatro anos antes caminhava para o endurecimento. – dois meses depois, em 13 de dezembro, o governo do marechal Arthur da Costa e Silva surpreenderia o país com a edição do Ato Institucional no 5. Entretanto, quem passasse, naquela manhã, em frente ao prédio que abrigava a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG (Fafich), na rua Carangola, não perceberia nada de anormal. Apesar de sábado, era dia de aulas.

O que pouca gente sabia, nem mesmo a direção da faculdade, era que um grupo de estudantes estava reunido, naquele dia, no subsolo da Fafich, com o objetivo de organizar a viagem ao Congresso da União Nacional de Estudantes (UNE), que ocorreria, em uma semana, em Ibiúna (SP). Apesar do sigilo que cercava aquela reunião, as forças da ditadura tomaram conhecimento do encontro e prepararam uma estratégia para dissolvê-lo.

Às 9h30, quando participava de uma reunião administrativa na Fafich, o então diretor da faculdade, professor Pedro Parafita de Bessa, foi chamado à Secretaria de Estado de Segurança. Quando retornou, viu, estupefato, o prédio da rua Carangola cercado pela Polícia Militar, que ameaçava entrar para prender o presidente do Diretório Acadêmico (DA) da Fafich, à época o estudante de história Waldo Silva, e outros líderes estudantis. “Eles me tiraram da escola para poderem cercá-la”, declarou Bessa, ao relembrar esse dia, em entrevista ao Boletim da UFMG, em 1987.

Acervo Projeto República/UFMG
Tropas da Polícia Militar de Minas Gerais ocupam a Fafich, na rua Carangola (1968)
Tropas da Polícia Militar de Minas Gerais ocupam a Fafich, na rua Carangola (1968)

Começava ali um dos mais célebres episódios de resistência política da Universidade à ditadura. Do subsolo, relembra Waldo Silva, os estudantes foram para os andares mais altos da Fafich (7º e 8º) e, no caminho, montaram barricadas nas rampas internas, com carteiras e mesas recolhidas nas salas de aula. Do alto do prédio, um grupo atirava pedras nos policiais, numa tentativa de evitar a invasão. Os elevadores foram desligados e apenas uma linha de telefone foi mantida, para que os entrincheirados pudessem se comunicar. Aos integrantes da União Estadual de Estudantes (UEE) juntaram-se os demais alunos que assistiam às aulas no dia, além de professores e funcionários. Calcula-se que mais de 700 pessoas ficaram sitiadas no prédio. Aos poucos, os parentes dos estudantes começaram a se juntar, do lado de fora, em busca de notícias.

Firmeza e solidariedade A resistência dos alunos, professores e funcionários e a coragem e habilidade do professor Pedro Parafita de Bessa impediram um provável banho de sangue: “[Se houvesse a invasão] iria morrer muita gente”, acredita Waldo Silva. Entre outras coisas, Bessa e os sitiados rejeitaram sumariamente a proposta dos militares de levantar o cerco em troca de Waldo e de outros nove líderes do movimento estudantil. O diretor fez contato com o Exército e, também, com o vice-presidente Pedro Aleixo e o senador Milton Campos. Após muitas negociações e uma carta da direção da Fafich negando a existência da reunião clandestina, o cerco foi levantado. Já era noite em Belo Horizonte quando os estudantes começaram a sair do prédio, ainda temerosos de que tudo não passasse de um truque.

A saída foi emblemática do espírito de solidariedade que unia a comunidade acadêmica contra as ingerências da ditadura na Universidade. Os professores foram os responsáveis por tirar do prédio os alunos mais visados e levá-los para locais seguros. O próprio Waldo foi transportado para um sítio nos arredores de Belo Horizonte. Dias depois, ele embarcaria para Ibiúna, onde acabou preso junto com cerca de outros mil estudantes, no mais duro golpe sofrido pelo movimento estudantil no período de repressão.

Hoje presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) em Minas Gerais, Waldo lembra com orgulho da resistência ao cerco da Fafich e, com carinho, de Pedro Parafita de Bessa, falecido em 2002, aos 79 anos. “Era uma figura fascinante”, recorda-se. Bessa estava longe do radicalismo político do movimento estudantil, mas prezava a autonomia da Universidade e, sobretudo, a liberdade política.

O episódio sintetiza bem o espírito e a tradição política da UFMG. “Não fui eu, que, na época, tinha a honra de ser o diretor da escola, que resisti. Foi a escola, professores, alunos e funcionários”, disse Bessa, em aula inaugural, em 1990. Aquela não foi a única agressão do regime à Universidade Federal de Minas Gerais. No mesmo ano de 1968, mais de 200 estudantes foram presos numa invasão da Faculdade de Medicina, na avenida Alfredo Balena, que começou com uma batalha nas ruas e terminou dentro do prédio da escola. Antes, em 1966, a Polícia Militar sitiou a Faculdade de Direito, na Praça Afonso Arinos, durante um encontro de estudantes. O episódio só não terminou em confronto graças à intervenção do então reitor da UFMG, Aluísio Pimenta, que entrou no prédio e conduziu as negociações para a saída pacífica dos estudantes. Ele contou, nesse dia, com o apoio do cardeal Dom Serafim Fernandes de Araújo, à época reitor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais.

Vítimas do AI-5 Aluísio Pimenta foi um dos principais líderes da resistência universitária. Ele assumiu a Reitoria menos de dois meses antes do golpe militar de 1964 e sofreu enorme pressão para entregar ao governo estudantes, professores e funcionários considerados “subversivos”. Pimenta recusou-se a ceder ao regime e chegou a cogitar, nas primeiras semanas após o golpe, a renúncia ao cargo, por considerar que não tinha condições de dirigir a UFMG com liberdade. Foi demovido da idéia por um grupo de representantes da comunidade acadêmica, reunido em sua casa. “As pessoas presentes a essa reunião [...] argumentaram que a renúncia implicaria entregar a Universidade nas mãos de pessoas não confiáveis e ceder ao jogo dos golpistas. Decidimos que deveríamos resistir de todas as formas possíveis e proteger o mais que pudéssemos os companheiros. Saímos da reunião com esse pacto”, relembra Pimenta, em depoimento ao livro Universidade Federal de Minas Gerais – Memória de Reitores (1961-1990), organizado por Maria Efigênia Lage de Resende e Lucília de Almeida Neves e publicado, em 1998, pela Editora UFMG.

Aluísio Pimenta, no entanto, pouco depois de deixar a Reitoria da UFMG, seria uma das vítimas diretas da ditadura. Ele foi aposentado com base no AI-5, assim como ocorreu com o ex-diretor da Fafich Pedro Parafita de Bessa, numa decisão que, certamente, foi influenciada pela atuação de ambos no cerco à Faculdade. Outra vítima do AI-5 foi o sucessor de Pimenta, o professor Gérson Boson, cassado ainda como reitor, em 1969. Boson, embora não estivesse afinado com as posições políticas de esquerda, era visto com desconfiança pelo regime, por suas atitudes democráticas. Uma delas foi a de reunir-se com representantes do movimento estudantil, no auditório da Reitoria, para discutir questões como o preço das refeições no Restaurante Universitário.

O depoimento do ex-reitor, no livro Universidade Federal de Minas Gerais – Memória de Reitores (1961-1990), é um retrato da situação vivida por ele na época: “Você já ouviu falar na história da luta entre o mar e o rochedo, em que sofrem os mariscos? Na verdade, eu fui, nesse episódio [ele se referia ao relacionamento com os estudantes, de uma maneira geral], um verdadeiro marisco. Porque os estudantes, já que eu não podia atender à maioria de suas reivindicações, me tinham como partidário da ditadura. E, de outro lado, quando eu não admitia que a polícia ou a segurança usassem dos seus processos violentos contra estudantes dentro da Universidade ou contra a comunidade universitária, viam-me como esquerdista.”

Drible na repressão Marcelo de Vasconcellos Coelho assumiu o cargo de reitor, com a cassação de Boson, e, também, deixou sua marca na resistência à interferência do regime militar na Universidade, assim como seu sucessor, Eduardo Osório Cisalpino. Os dois foram responsáveis por impedir o funcionamento, de fato, de um dos órgãos mais sinistros criados pela ditadura, a Assessoria Especial de Segurança e Informação (Aesi). Esta atuou em todas as universidades brasileiras, menos na UFMG. O aparelho tinha como finalidade reunir informações sobre professores, funcionários e estudantes e repassá-las ao governo. Num gesto de grande habilidade política, Marcelo Coelho incluiu a Aesi no organograma da Universidade, mas concentrou as funções do órgão em um único funcionário, Roberto Faria, ligado diretamente a ele. Faria chegou a ser visto com desconfiança por parte da comunidade acadêmica, mas foi o braço direito de Coelho e de Cisalpino na tarefa de driblar a repressão e evitar que chegassem ao governo militar informações sobre a atuação política de professores, funcionários e estudantes da UFMG.

Naqueles tempos, eram comuns os relatos da existência de “espiões” da ditadura dentro da Universidade.

Entretanto, na opinião do cientista político e professor emérito da UFMG, Fábio Wanderley Reis, os casos de resistência superaram, em muito, os de traições. “Na década de 70, a UFMG foi objeto de pressões de diversos tipos e se comportou com galhardia. Não há qualquer motivo para supor que todo mundo participasse dessa tradição de autonomia. Houve pessoas dispostas a se submeter. Mas houve mais gente disposta a resistir e até a correr perigo. No geral, o impacto negativo da repressão foi muito menor do que poderia ser”, afirma Reis, testemunha desse período. Ele próprio viveu situação semelhante à do ex-reitor Gérson Boson. Era visto com desconfiança por parte dos alunos, entre outras coisas, pelo fato de pertencer a um departamento que recebia recursos da Fundação Ford, norte-americana. Reis, no entanto, atuou diversas vezes para impedir a aplicação do Decreto-Lei 477 a estudantes. Esse Decreto-Lei estabelecia punições a docentes e alunos que cometessem certas infrações e, na prática, de acordo com o cientista político, estimulava as autoridades universitárias a exercer pressão sobre a comunidade acadêmica, antes mesmo que o governo o fizesse.

A ditadura militar, iniciada em 1964 e encerrada em 1985, foi marcada por lances de ousadia e heroísmo, temperados com recuos e concessões estratégicas, mas, sobretudo, de muita habilidade, para preservar a autonomia da UFMG. A historiadora Maria Efigênia Lage de Resende relembra uma frase do ex-reitor Marcelo Coelho, em que ele sintetiza o clima vivido na época: “Havia uma certa harmonia do medo aqui dentro da Universidade.” A atuação corajosa de muitas pessoas contribuiu, no entanto, para o fortalecimento da tradição da UFMG de defesa da autonomia e da liberdade.

Trajetórias que se confundem

Um dos pilares da resistência da UFMG à repressão, o movimento estudantil tem uma trajetória que se confunde com a da própria Instituição, já no seu nascedouro. Data de1927, ano de fundação da antiga UMG, a organização do primeiro grêmio de estudantes, que tinha como objetivos “manter e prolongar a solidariedade universitária; zelar pelo bom nome da Instituição, defendendo-a sempre que se fizer necessário”. Em 1928, é fundada a Confederação Universitária de Minas Gerais, sob o comando do então estudante José Maria Alkimin, que viria a ser deputado federal e, também, ministro da Fazenda no governo do presidente Juscelino Kubitschek.

À Confederação Universitária sucedideu a Associação Universitária Mineira, no ano seguinte. Em 1932, finalmente, foi criado o Diretório Central dos Estudantes (DCE), até hoje, o órgão máximo de representação estudantil na UFMG.

Durante o período de repressão, o DCE atuou em sintonia com movimentos de professores e funcionários e, até mesmo, com a Reitoria, em defesa da universidade. No entanto, a história registra, também, momentos de conflito. Um deles foi a greve dos alunos da Faculdade de Medicina, em 1956, quando estudantes reivindicavam, entre outras coisas, maior participação na vida da Universidade. Na época, as decisões no âmbito das Unidades Acadêmicas da UMG concentravam-se nas mãos dos professores catedráticos, figura extinta pela Reforma Universitária, na década seguinte. Em 1960, foi a vez de os estudantes da Faculdade de Ciências Econômicas se mobilizarem pela substituição da direção da escola. O movimento levou a uma greve nacional, liderada pela União nacional dos Estudantes (UNE), e culminou com a renúncia do diretor.

Muito mais que um retrato na parede

Reprodução/Foca Lisboa
Reitor Interino Francisco José de Almeida Brant
Reitor Interino Francisco José de Almeida Brant

Se a resistência foi a marca da atuação da UFMG na ditadura militar iniciada em 1964, na Era Vargas (1930-1945) a relação da UMG com o poder público foi de ambigüidade, personificada na figura de Francisco José de Almeida Brant. Trata-se de um dos personagens mais curiosos e fascinantes da história da Instituição. Tanto que seu retrato figura na galeria de reitores, sem que ele nunca tenha sido nomeado oficialmente. De fato, Brant ocupou o cargo por alguns períodos, um deles com duração de quase quatro anos, mas sempre na condição de reitor em exercício.

A trajetória de Brant dá pistas de que ele funcionava como um mediador entre a UMG e o poder, fosse este estadual ou federal. Sua passagem pela direção da Universidade praticamente coincidiu com o governo do presidente Getúlio Vargas. Além disso, Brant era próximo de Benedito Valadares, o interventor de Vargas no governo de Minas. Na época, o Palácio da Liberdade nomeava o Reitor e dava subvenções à Universidade, ainda que esta fosse, juridicamente, uma instituição privada.

Brant, que dirigiu a Faculdade de Direito, foi eleito vice-presidente do Conselho Universitário em abril de 1931. Em 1935, tornou-se vice-reitor, função criada naquele ano. Nos dez anos seguintes, foi reconduzido sucessivamente ao cargo, independentemente de quem fosse o reitor. Em 19 de novembro de 1945, 20 dias após o fim do governo Vargas, Brant alegou motivos de saúde para deixar o posto.

O período mais emblemático da passagem de Brant pela UMG começou em outubro de 1937, um mês antes de Getúlio Vargas decretar o Estado Novo. Na época, Benedito Valadares decidiu não escolher nenhum dos nomes indicados em lista tríplice, para a Reitoria. Com isso, o vice-reitor Brant assumiu o cargo e nele ficou até setembro de 1941, quando o governo, finalmente, indicou Mário Casassanta. Durante três anos e 11 meses, comandou a Universidade sem jamais ter sido nomeado para o Reitorado. É exatamente por causa desse período que ele figura na galeria de reitores da UFMG.

A ambigüidade reside no fato de que Brant, embora próximo ao governo, era um homem da Universidade, que protegeu interesses da Instituição naquele período. Um personagem cuja atuação merece ser desvendada pelos historiadores.

Diversa - Revista da Universidade Federal de Minas Gerais - Ano 6 - nº. 11 - maio de 2007