Sobre conquistas e perdas *

Flávio Barbeitas **

o longo do tempo, a cultura ocidental - civilização de raízes européias que extrapolou limites geográficos e tornou-se hegemônica - construiu uma imagem de si própria que viria a pautar o seu relacionamento com as demais culturas do planeta. Responsável pelas conquistas da ciência, não tardou em estabelecer com os grupos humanos alheios ao seu modo de pensar uma nítida relação de superioridade. Rotulando-os "primitivos", tratou-os como os que ainda estavam no começo da longa caminhada do progresso, os que ainda não haviam alcançado o raciocínio científico e assim por diante.

No século 20, essa concepção evolucionista das culturas foi duramente combatida e pretensamente substituída por uma perspectiva de diálogo e encontro com o diferente, com o "outro". A antiga concepção, porém, continua a fornecer pressupostos ao nosso pensamento, indicando que a crítica ao evolucionismo, embora forte, talvez não tenha sido suficientemente radical.

Um exemplo é a maneira como nós, ocidentais, consideramos a nossa própria história. Sob o império da cronologia, habituamo-nos a estabelecer marcos divisores do tempo e a tomar a nossa origem como se esta fosse apenas nosso início e rudimento, e não a fonte que abriga nossos traços essenciais. Assim, consideramos o alfabeto uma grande conquista humana e apressadamente definimos como pré-história tudo que antecede essa invenção. Consideramos Sócrates, Platão e Aristóteles a síntese da filosofia grega e rotulamos de pré-socrático todo o pensamento anterior. Nesses casos, como em outros, o prefixo é mais do que um corretivo cronológico; é também uma atribuição de valor, fruto de decisões históricas que impuseram uma certa leitura do passado e a própria constituição do presente.

Nossos olhos, embotados de ciência e técnica, habituaram-se a enxergar apenas os inquestionáveis avanços da civilização, sem atentar para a contrapartida dos inerentes retrocessos. Andamos esquecidos de que toda conquista é feita de perdas. Maravilhados e atordoados com o tropel do progresso, não nos damos conta, por exemplo, de que, na mesma medida em que construímos um formidável sistema de comunicação capaz de transformar nosso planeta em aldeia, deterioramos também a nossa relação com a palavra. Reduzimos a linguagem - esse autêntico modo de ser do homem, instaurador de mundo - a mero elemento de informação, despindo-a da densidade e do vigor poético que detinha em épocas remotas.

O mesmo pode ser dito em relação à música. A moderna ciência, na sua devastadora sede de tudo conhecer, pretende ter esclarecido o mistério dos sons, oferecendo-nos a técnica que nos habilita a fazer com eles praticamente qualquer coisa. Na era da eletrônica, produzimos seqüenciadores, sintetizadores e softwares musicais. Contamos também com uma fabulosa indústria de gravação que inunda o globo com todo tipo de música. Fascinados com esses recursos tecnológicos e embevecidos com a nossa potência de pôr e dispor do som, terminamos por esquecer perguntas fundamentais: o que é música? Que papel ela desempenha em nossas vidas? Se por um instante pararmos e refletirmos, poderemos concluir que a música atualmente é pouco ou nada mais do que uma diversão, entre outras, na gigantesca indústria contemporânea do entretenimento. Para uns, ela pode significar a experiência de um supremo prazer estético; para outros, uma terapia contra o estresse citadino ou a chance de extravasar tensões numa casa noturna. Seja qual for o rótulo ou a finalidade, certo é que não consideramos mais a música como uma linguagem e, portanto, não a tomamos como possibilidade de revelação do real e de instauração do mundo.

Uma ótima oportunidade para nos depararmos com a profundidade desta nossa situação histórica ocorreu na Escola de Música da UFMG com o Encontro Internacional de Etnomusicologia: Músicas africanas e indígenas em 500 anos de Brasil, realizado em outubro último na capital mineira. Estiveram reunidos pesquisadores de várias partes do mundo com representantes de povos africanos, de sociedades indígenas e de comunidades mineiras que cultivam o congado. Os "primitivos" de outrora têm muito a nos ensinar. Na simplicidade do seu fazer musical, distante dos recursos mirabolantes da tecnologia, mostram-nos como, na presença e no mistério da música, se faz ouvir o apelo do Homem. Se, para além da mera curiosidade pelo "exótico", nos dispusermos a um verdadeiro encontro com o outro, poderemos, em meio às diferenças, enxergar a identidade de nossa condição humana. E, lembrando do que perdemos com as nossas conquistas, pensar outras possibilidades de constituir o futuro.

*Artigo publicado no jornal Estado de Minas, de 30/10/2000

**Professor e coordenador do Colegiado do curso de Música da UFMG

 





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Nº 1299 - Ano 27 - 15.11.2000