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Nº 1389 - Ano 29 - 27.03.2003

 

 

Por uma previdência pública e solidária

* Sérgio Miranda

nalisar a reforma previdenciária - idealizada e iniciada por Fernando Henrique Cardoso - é importante para evidenciar seu verdadeiro propósito privatista e de favorecimento ao mercado dos fundos de pensão. O Projeto de Lei Complementar (PLC 9/99) contém inconstitucionalidades - como a quebra de contrato com os servidores públicos, desrespeitando o direito à aposentadoria integral. A intenção é regulamentar o artigo 202 da Constituição Federal, cuja redação foi alterada pela Emenda 20/98, que visa à substituição do modelo público de repartição por outro de capitalização financeira individual.

Essa foi a grande motivação do ex-presidente, encoberta por propagandas oficiais ostensivas que distorciam informações e manipulavam números com o objetivo de qualificar o sistema previdenciário como insustentável, prestes a falir, além de responsabilizar os servidores públicos pelo déficit. Mas, em comparação ao PIB, o déficit do setor público está caindo, enquanto aumenta o do regime geral, o INSS.

Mas, para vilanizar ainda mais o servidor público, os valores relacionados às previdências são mostrados em bilhões de reais. Vale sublinhar que, em 2003, o gasto com a previdência dos trabalhadores da iniciativa privada corresponderá a 1,38% do PIB. Em 2037, subirá para 2,23%. Em relação à previdência dos servidores públicos federais, o resultado é decrescente. Neste ano, o "déficit" corresponderá a 0,99% do PIB e, em 2037, cairá para 0,33%.

Outro paradoxo reside no fato de que a instituição da previdência complementar para o serviço público aumentará gastos em vez de reduzi-los. Isso porque os servidores que recebem acima do teto e contribuem com 11% de sua remuneração para o governo passarão a pagar para os fundos. Assim, o governo terá de desembolsar a contribuição patronal para esses fundos de previdência.

Não é difícil chegarmos ao óbvio: como o mercado do setor privado esgotou-se, o grande filão a ser explorado é o dos servidores, que poderão ter que migrar para os fundos de previdência complementar. A reforma proposta objetiva, na verdade, obrigar não só os servidores públicos, mas os trabalhadores da iniciativa privada a procurar os fundos de previdência complementar.

Defendemos a previdência pública como instrumento constitucional de proteção social aos cidadãos e de fortalecimento do Estado, mantendo _ e ampliando _ seu caráter redistributivo e solidário. É fato que a previdência precisa de mudanças. Mas elas devem-se voltar ao desenvolvimento econômico e social, à repartição da renda e à valorização do trabalho. É preciso estabelecer um teto de benefícios que, expresso em salários mínimos, garanta ao trabalhador a segurança de uma aposentadoria digna.

Ao entender a reforma exclusivamente sob a ótica fiscal, o governo empenhava-se, principalmente, em reduzir gastos e cortar direitos, abandonando o papel histórico da previdência - o de cobrir riscos de longo e curto prazos, como desemprego, doenças, maternidade, acidentes de trabalho, velhice, invalidez e morte. Em vez de considerar as mudanças demográficas e os novos parâmetros de expectativa de vida do brasileiro, a reforma é pensada apenas pela ótica do ônus fiscal e do impacto sobre as contas públicas.

Se a reforma da previdência mantém a tônica fiscal, de corte de despesas e de aumento de arrecadação, não é incoerente que esse debate anteceda o da reforma tributária? A discussão em torno das duas reformas deveria, ao menos, ocorrer de forma conjugada.

A aposentadoria integral do servidor público é decorrência do próprio regime de emprego e de contribuição previdenciária. O servidor contribui mensalmente sobre a totalidade de seu salário e, por isso, recebe aposentadoria integral. Em contrapartida, não dispõe de FGTS, enquanto o trabalhador da iniciativa privada, que o possui, tem direito, quando da sua aposentadoria, de sacar a totalidade das suas reservas do Fundo de Garantia.

É inadmissível falar em déficit simplesmente porque o Regime Geral da previdência, o INSS _ o maior e principal instrumento de distribuição de renda e de proteção social do país _ é custeado pelo orçamento da Seguridade Social, que é superavitário. Somente em 2002, somando-se as receitas de contribuições sociais arrecadadas para o INSS com as receitas próprias e descontadas as despesas com a seguridade social, o saldo do orçamento foi de R$ 48,8 bilhões!

Tal soma não pode ser forjada como prejuízo. O curioso é que FHC e outros artífices dessa reforma nunca assumiram que foi o governo o responsável por tal déficit, ao desvincular 20% do que se arrecadou da sociedade com o INSS, Cofins, CPMF, PIS/Pasep, CSLL, entre outras contribuições. Tudo isso foi feito por meio do eficiente instrumento de ajuste fiscal, antes intitulado Fundo Social de Emergência (FSE), depois Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e que hoje se chama Desvinculação de Recursos da União (DRU), voltado para a produção de superávits primários. Eles geram desvios da ordem de R$ 30 bilhões por ano, e apenas uma parte dos valores desviados retorna para a seguridade.

A redução de benefícios é atribuída pelos últimos governos ao déficit do sistema previdenciário. Mas é possível demonstrar que esse déficit é uma falácia histórica e que os verdadeiros motivos para implantar essa política de arrocho são outros. Há um inconfessável interesse do capital financeiro na fragilização da previdência pública, a fim de justificar sua privatização e a apropriação deste que é o maior fundo social e de distribuição de renda nacional.

* Deputado federal pelo PCdoB/MG