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Nº 1530 - Ano 32
11.05.2006

A argumentação que mistifica

Ana Maria Vieira

ão procurem a fleuma britânica em David Miller. Talvez ele surpreenda com sua ironia bem-humorada, mas, provavelmente, sua agilidade mental é a característica que mais impressionará o interlocutor. Um dos mais atuantes especialistas na área de filosofia da ciência, Miller esteve na UFMG, em abril, participando de conferência promovida pelo Instituto de Estudos Transdisciplinares Avançados (IEAT). No auditório, invariavelmente, iniciava suas frases em espanhol, mas, impaciente, finalizava-as em sua própria língua. É provável que, para esse filósofo inglês, qualquer outro idioma se revele inapto para seguir raciocínios que desdobram exercícios lógicos com grande rigor e rapidez.
Foca Lisboa

Miller: defesa da modéstia intelectual

Professor do departamento de Filosofia da Universidade de Warwick, na Inglaterra, Miller publicou vários livros e artigos sobre lógica, probabilidade e filosofia da ciência, alguns dos quais em co-autoria com Karl Popper, parceiro de trabalho durante 30 anos.

Nesta entrevista ao BOLETIM, ele critica o movimento filosófico conhecido como Pensamento Crítico. “Sua noção de lógica induz as pessoas a repetirem preconceitos”, diz ele, completando com um alerta bem-humorado: “Não deixem que essa corrente deite raízes no Brasil, como está fazendo em outros países da América do Sul”.

O que significa o seu alerta sobre o valor do argumento e da validade? Qual o impacto que o Pensamento Crítico poderia ter para a ciência ou, cotidianamente, na formação de mentalidades?

Ele pode ajudar os não-filósofos a identificar uma visão incorreta de lógica. Foi publicado, aqui no Brasil, um livro de Allan Sokal que tende a produzir conclusões equivocadas sobre o tema. Ele induz as pessoas a acreditarem que estão argumentando, quando simplesmente repetem preconceitos. Popper tinha um dito: “Eu posso estar errado e você, certo, mas juntos podemos chegar mais próximos da verdade”. Portanto, devemos participar de uma discussão não para persuadir, mas para aprender e ser persuadido. A idéia de que o argumento existe para justificar e persuadir não é adequada. Poucas pessoas conseguem esse nível de honestidade intelectual. Todos tentamos persuadir.

A questão da persuasão e do aprendizado, ou da proximidade da verdade, está presente na vida social. A mídia, o marketing e o poder político trabalham com a persuasão e com o preconceito...
Sim. Estou de acordo que a maior parte da mídia usa da persuasão. Sei que o Programa de Pensamento Crítico também considera ruins a persuasão e o preconceito. Esse movimento pensa que os argumentos usados pelos políticos e outros atores estão errados. Concordo que a mídia impõe e reitera preconceitos e persuasões, mas não é essa a minha questão central. Estou interessado na conclusão desse processo.

Qual conclusão?
Não importa se os argumentos são bons ou ruins. O que interessa é verificar sua conclusão. Exemplificando: “Hitler acha que precisamos destruir os vermes/Os judeus são vermes/Então, deveríamos destruir os judeus”. O argumento, nesse tipo de lógica, é válido, mas a conclusão é terrível. Ela parte do pressuposto de que o que Hitler diz é verdade. Os argumentos são construídos, e as pessoas examinam a conclusão e dizem: “Olha, essa conclusão é ruim, então vamos ver em que ponto a gente errou nos argumentos”. Assim, eles olham a premissa – nós devemos destruir os vermes –; isso é uma coisa boa; logo, qual é o problema? Judeus são vermes não é um ponto bom, mas é só isso? É preciso olhar todos os pontos e normalmente as pessoas olham a conclusão e vão tentando voltar nos pontos para ver qual está errado. No final, as doutrinas é que são importantes. Os argumentos são decorativos. A gente não pode provar qualquer coisa, é interessante olhar a circularidade do argumento.

Além da lógica, não é necessário estabelecer essa referência a partir das dimensões culturais e sociais?
Quando discutiu isso pela primeira vez, Popper falou que era uma questão ética. Tudo deveria ser tratado como igual – um imperativo categórico. Se eu achar que só vou ensiná-la, não estarei tratando-a com igualdade. É o que fazemos com as criancinhas. E no sentido intelectual elas não são mesmo iguais aos adultos, mas o são no aspecto moral. Se vamos travar uma discussão, e eu parto do pressuposto de que somos iguais, então a gente pode aprender um com o outro. Não há dúvida de que essa é uma dimensão ética.

O senhor colaborou muito tempo com Karl Popper. Qual a influência dele sobre a sua filosofia?
Muito considerável, mas não estou de acordo com ele em tudo.

Em que pontos vocês se afastam?
Especialmente em aspectos técnicos. Creio que Popper não foi suficientemente radical. Ele era radical, mas era possível ir além.

Alguns filósofos indagam sobre o lugar da epistemologia popperiana num século em que a epistemologia é histórica. Como o senhor vê essa questão?
Nesse campo, Popper é ignorado. Nas antologias de epistemologia, não se vê menção a ele. Apesar disso, é preciso considerar que a epistemologia popperiana é muito próxima do darwinismo e que os argumentos usuais da epistemologia histórica são mais do tipo indutivista, na linha de Lamarck [o francês Jean-Baptiste Lamarck, autor da primeira Teoria da Evolução, formulada em 1809]. Para a epistemologia de Popper, não importa quão longa seja a vida de uma teoria: a exemplo das espécies, as teorias podem ser extintas.

A racionalidade presente no pensamento do senhor, uma tradição filosófica do Ocidente, é referência adequada para lidar com o conflito cultural com o Oriente?
A modéstia é o primeiro passo a ser dado para melhorar uma relação. E seria bom que todo mundo no Ocidente tivesse modéstia intelectual. Os cientistas são muito arrogantes, acham que sabem tudo, mas deveriam reconhecer que também precisam aprender.