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Nº 1600 - Ano 34
10.03.2008

Educação e direitos humanos*

Vernor Muñoz**

Os processos educativos são a máxima evidência da inter-relação entre os direitos humanos. Por essa razão, o direito à educação é uma garantia individual e um direito social cuja expressão máxima é a pessoa e o exercício da sua cidadania. A riqueza da educação está em seus fins, que envolvem todas as dimensões da dignidade de pessoas, culturas e povos, e que têm sido reafirmados nos principais instrumentos internacionais de direitos humanos.

Porém, a efetivação da educação como direito humano deve enfrentar o duro embate com as forças que consideram a educação um instrumento disciplinador do mercado e, conseqüentemente, um tipo de serviço – e não um direito – que atende prioritariamente aos interesses da economia. Nesse sentido, não é estranho que a educação seja vista por alguns como um instrumento reprodutor dos mecanismos de acumulação, concentrado na tarefa de propagar, com um pretenso caráter neutro, os fins que o crescimento econômico requer.

Por isso, a instalação dos serviços educativos é objeto de empréstimos concedidos por organismos financeiros internacionais que, apesar do discurso de reconhecimento dos valores da educação, não se propõem a liberar os países pobres de dívidas externas impagáveis e injustas. O tema do financiamento da educação é uma questão de igualdade, eqüidade e justiça, e não necessariamente de recursos, que existem, mas estão mal distribuídos entre os países e, no âmbito destes, entre os diferentes grupos sociais.

A separação entre propósitos e ações na educação opera no marco das desigualdades e assimetrias estruturais, em que também se promove a falsa idéia de que o desenvolvimento macroeconômico é o objetivo principal da educação, usualmente considerada como um “gasto”, e não como um direito humano.

O crescimento econômico nem sempre leva ao desenvolvimento humano. Por conseguinte, é inapropriado propor a realização do direito à educação como um condicionante da eficiência produtiva ou mercantil, uma vez que a renda per capita não tem relação evidente com a eqüidade social, especialmente nas economias latino-americanas. Todos esperamos repercussões econômicas da educação e da alfabetização, mas não se pode crer que essas repercussões sejam seu fim primordial.

O crescimento econômico nem sempre leva ao
desenvolvimento humano. Por conseguinte,
é inapropriado propor a realização do direito à
educação como um
condicionante da
eficiência produtiva ou mercantil, uma vez que a renda per capita não tem relação evidente com a eqüidade social

É certo que os sistemas educativos devem promover alterações em seus fins e estratégias se não resultam na construção de cidadanias solidárias e igualitárias, mas também é certo que muitos dos grandes problemas da educação não se encontram nos sistemas escolares, mas no entorno socioeconômico francamente discriminatório. Sem dúvida, as políticas econômicas internacionais indiferentes às necessidades sociais e à imposição de um modelo político e socioeconômico único, baseado centralmente no liberalismo econômico, têm grande impacto e requerem o crescente reconhecimento da necessidade de desenvolver modelos mais flexíveis e sensíveis aos direitos humanos.

Os esforços empreendidos pelos governos de todo o mundo têm se mostrado insuficientes ou inadequados para atingir esse objetivo. O Informe de Educação 2007, divulgado em janeiro pela Campanha Mundial pela Educação, aponta que, em 178 países investigados, 72 milhões de crianças permanecem sem escolarização, 774 milhões de adultos são analfabetos e serão necessários mais 18 milhões de professores antes de 2015 para que se atinjam os objetivos do Educação Para Todos, estabelecidos em 2000, na Cúpula de Dakar.

Mais que recursos financeiros, os países devem gerar estratégias para o efetivo envolvimento da sociedade na construção da educação universal, pública, gratuita e de qualidade. Não é mais possível que a educação seja moldada pelos setores que conduzem o mercado. É preciso envolver os segmentos tradicionalmente marginalizados na elaboração e implementação das políticas educacionais, destacadamente estudantes, mães e pais.

Mas também é urgente dar voz às professoras e aos professores, sob pena de a educação ofertada reduzir-se à tarefa mecânica de reprodução de conhecimentos e valores destituídos de significados humanos. O processo desejado é a oferta de mudanças na educação não apenas para facilitar o desenvolvimento econômico, mas, principalmente, para a construção de valores e conhecimentos que tenham como fim o desenvolvimento da dignidade humana e cidadania comprometidas com os direitos de todas as pessoas.

* Artigo publicado na Folha de S. Paulo, no dia 3 de fevereiro
** Escritor costarriquenho, professor de direitos humanos na Universidade Latina da Costa Rica. É relator especial da ONU para o direito à educação.

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