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Nº 1600 - Ano 34
10.03.2008

entrevista

A rua inverteu a pirâmide da moda

Luiz Dumont Júnior

Identidade e civilidade. Com essas duas palavras, a jornalista e empresária Glória Kalil resume os conceitos de moda e etiqueta, dois temas que a transformaram numa das mais requisitadas conferencistas brasileiras. Destaque da última edição do Festival de Verão, Glória Kalil esbanjou simpatia e elegância nesta entrevista concedida ao BOLETIM, no momento em que o curso de Design de Moda acaba de ganhar status de graduação na UFMG. Ela fez uma análise histórica do fenômeno da moda, antes ditada pela elite e agora uma expressão viva das ruas.

Foca Lisboa
gloria
Glória Kalil: moda é expressão das individualidades

A senhora veio à Universidade falar sobre moda e etiqueta. É uma mistura inusitada ou tem tudo a ver?

É inusitada e tem tudo a ver. Acho muito interessante uma universidade chamar alguém para falar sobre esses assuntos, porque discordo da noção de que moda e etiqueta são coisas fúteis ou superficiais. Moda é um dos meios mais fortes de expressão de uma identidade. É uma forma da pessoa manifestar o que pensa sem recorrer a palavras. Já a etiqueta está associada à civilidade. Portanto, a futilidade passa longe dessas duas coisas – moda e etiqueta – e isso hoje em dia é cada vez mais evidente.

A moda hoje é mais democrática?

Podemos dizer que, nos últimos 500 anos – da Renascença aos anos 50 do século passado –, a moda foi uma expressão das classes dominantes. Dizia-se que até os anos 50 a moda era dominada pelo bom gosto. Bom gosto sob o ponto de vista de quem? Quem determinava isso? As classes dominantes, sem dúvida. Os anos 60 trouxeram uma revolução jovem, uma ruptura extrordinária, marcada pela liberação feminina, pílula, amor livre, homossexualismo, grupos de música, estética nova, magreza; tudo ditado pelos jovens. A partir dos anos 90, com a queda do muro de Berlim, com a formação do mercado comum europeu, globalização e comunicação instantânea, tenho a impressão de que as pessoas passaram a se aglutinar em tribos urbanas exatamente para se protegerem da uniformização representada pela globalização. E aí a moda passou a ser representada pela rua.

É como se a pirâmide da moda tivesse sido invertida. Antes, a alta costura e a classe dominante estavam no topo da pirâmide, a classe média e o prêt-à-porter no meio e a rua na base. Isso foi até os anos 50. Nos anos 60, com a contracultura, a pirâmide balançou. Nos anos 90, ela inverteu-se completamente. Agora é a rua, com suas tribos, que influencia a moda. Esta passou a ser uma expressão de todas as individualidades e aí se tornou muito mais democrática.

É mais difícil entender a moda nos dias de hoje?

Sua leitura hoje é muito mais difícil. Sempre me perguntam: afinal, o que está na moda? E eu digo: para qual tribo? Cada uma tem sua moda, e essas tribos são muito diferentes entre si. Falam em moda jovem, mas que jovem? Jovem ligado em esportes? Em computador? Em música? São tribos diferentes, que se vestem diferente, comem coisas diferentes, ouvem músicas diferentes, freqüentam lugares diferentes.

Quem dita a moda?

A moda é um sistema econômico de renovação permanente e que faz o mundo capitalista girar. Quem trabalha com a confecção de produtos propõe coisas novas o tempo inteiro para despertar o desejo de consumo. Mas a moda é regida pela economia. Veja o exemplo dos corantes. Se falta petróleo, e determinada cor é obtida a partir do petróleo, a moda se volta para fibras naturais, como o algodão. A moda determinou o uso de cores naturais porque a indústria está preocupada com o bem-estar das pessoas? Nada disso. Tudo tem a ver com falta e abundância de matérias-primas.

O brasileiro observa as regras de etiqueta e elegância?

Tenho a sensação de que há povos que possuem mais intimidade com certas coisas da civilidade, até porque esse contato é bem mais antigo. Na Suíça, por exemplo, não há necessidade de ter uma pessoa tomando conta de uma banca de jornal. As pessoas deixam o valor do jornal e levam seu exemplar. Elas estão mais acostumadas a regras de convivência. Imagina isso aqui. Se a banca ficar sozinha, some jornal, some dinheiro, some banca, some tudo. Por outro lado, ocorrem coisas que desmentem essa idéia que associa civilidade e antiguidade de uma sociedade.

Recentemente, li que a Alemanha está sendo considerada pelos seus próprios governantes como o país mais mal-educado da Europa. E como é que isso está sendo medido a ponto de o governo voltar a instituir aulas de educação e bom comportamento nas escolas? É porque está custando caro para o Estado. Os tribunais de pequenas causas estão entupidos de ações motivadas por brigas e agressões no trânsito. As pessoas estão gastando dinheiro com advogados. Nos hospitais, é cada vez maior o número de feridos. Os alemães perceberam que a falta de educação está gerando um custo muito alto para o país.

Como é possível perceber que uma regra de etiqueta social está consolidada?

Primeiro, é preciso lembrar que regras de etiquetas não são leis. Etiqueta é um conjunto de códigos de comportamento, que se estabelece ao longo do tempo. Por isso é importante conhecê-los. Até mesmo para que sejam desobedecidos, pois se você conhece e não segue é porque mantém uma atitude de independência em relação a eles. Agora, se não conhece, você se mantém numa situação de absoluta insegurança. Fica sem saber se acertou ou não. É como num jogo. Para jogar é preciso conhecer a regra do jogo; caso contrário, não dá nem para blefar. Com as regras da etiqueta acontece a mesma coisa.