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Nº 1600 - Ano 34
10.03.2008

Sapatos bicolores no asfalto

Pesquisadora conhece dores e alegrias de um grupo de meia-idade que se apropriou de um pedaço de rua para dançar soul

Itamar Rigueira Jr.

 

Rita Ribeiro
quarteirao

Na década de 70, eles eram ouvintes fiéis do DJ Geraldão, na Rádio Cultura AM, e se reuniam em bailes na região central de Belo Horizonte para dançar o soul. Aos poucos, o ritmo perdeu terreno para a música disco e os encontros foram empurrados para a periferia da cidade. E eles acabaram se perdendo.

Sete amigos resolveram juntar de novo aquela turma e estão "instalados" em um quarteirão da rua Goitacazes – entre São Paulo e Curitiba –, nas tardes de sábado. Ao som gerado por equipamento precário, sem potência sequer para incomodar os vizinhos, eles recuperam amizades, afirmam sua identidade – e, claro, dançam muito.

O chamado Quarteirão do Soul mudou os planos para o doutorado da publicitária e mestra em comunicação pela UFMG, Rita Aparecida da Conceição Ribeiro, que já tivera projeto de pesquisa aprovado pelo programa de pós-graduação do departamento de Geografia. Moradora da mesma rua, Rita caminhava num final de semana e se sentiu atraída por aquele fenômeno. Passou quatro sábados apenas observando, antes de se aproximar para as primeiras conversas. Ali se iniciavam quatro anos de entrevistas e estudos que resultaram na tese defendida no final de fevereiro no IGC.

“Meu objetivo era entender como produtos da mídia podem interferir na formação de identidades, e como essas identidades modificam o espaço urbano”, explica a pesquisadora e professora universitária. Ao lembrar que o soul apareceu como expressão da identidade e do orgulho negro no final dos anos 60, Rita afirma que o movimento desses senhores e senhoras de Belo Horizonte é político, ainda que eles não tenham consciência disso. “Eles reivindicam espaço para a própria felicidade. Resistiram pacificamente às batidas da polícia nos primeiros tempos e hoje chegam a contar com a proteção dos policiais”, ela conta.

Foram os personagens do Quarteirão do Soul que forneceram a Rita Ribeiro as categorias de análise: o mito, representado por James Brown, a dança e a moda, elementos fundamentais para a constituição da identidade black. Brown encarna a vitória do negro de família pobre que superou os obstáculos e tornou-se dono da própria carreira; a dança funciona como ritual de afirmação da identidade e forma de ostentar longevidade; o modo de vestir é a expressão da elegância. “Os ternos em cores vivas, as calças de cintura alta e os belos e caros sapatos bicolores masculinos são marcas registradas do quarteirão do soul”, afirma a pesquisadora.

Documentário

O trabalho gerou mais de mil fotografias e quase 20 horas de gravação em vídeo – a pesquisadora fez questão de manipular a câmera, o que garantiu, segundo ela, alto grau de intimidade nas entrevistas. O taxista Ronaldo Black, o coveiro Miquita, o guarda Eduardo Black e a mulher Maristane – que se autodenomina “a dama do soul” –, Claudio, Tuca, Waldir, Mônica e Lourinho habitam as páginas da tese de Rita e podem se transformar também em personagens de um documentário sonhado pela pesquisadora. E, como se não bastasse, estão prestes a ver o quarteirão se tornar espaço cultural oficial da cidade, de acordo com projeto que tramita na Câmara de Vereadores.

Consciente do risco de agir de forma estereotipada, Rita conta que teve cuidado extremo para tratar de forma respeitosa aquelas pessoas de profissões humildes e vida sofrida. “Vi a dor de cada um por trás da alegria daqueles encontros, momento em que eles driblam as dificuldades do cotidiano”, declara a recém-doutora, que continua visitando os blacks que praticam a alegria e a fraternidade – eles se tratam de brothers e sisters – naquele pedaço de rua nas tardes de sábado.

Tese: Identidade e resistência no urbano: o Quarteirão do Soul em Belo Horizonte
Autora: Rita Aparecida da Conceição Ribeiro
Orientadora: Heloísa Soares de Moura Costa
Defesa: 28 de fevereiro de 2008, junto ao Programa de Pós-graduação em Geografia do Instituto de Geociências (IGC) da UFMG