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Nº 1637 - Ano 35
08.12.2008

opiniao

O dissenso e a conversa sensível ao poder na produção de nossas teorias

Sandra Azerêdo*

Este texto é uma tentativa de contribuir para o debate iniciado na edição 1.632 deste BOLETIM (3.11.2008) pelas professoras Maria Cristina de Gouvêa e Nilma Lino Gomes a respeito da participação de Charles Murray em seminário organizado pelo Laboratório de Diferenças Individuais, do Departamento de Psicologia. A afirmação racista de Murray às revistas Isto É e Época, segundo a qual “a miscigenação racial brasileira seria responsável por um suposto déficit intelectual da população”, fez as professoras questionarem a razão que levou a UFMG a convidar esse pesquisador, que, segundo elas, é “um autor desacreditado no campo acadêmico, que não goza de autoridade científica”, cujo trabalho é fruto de “investigações obscuras” produzidas em “institutos sem respeitabilidade acadêmica”, financiados por grupos conservadores. As autoras se preocupam mesmo que “suas teorias pseudocientíficas” e suas posições racistas divulgadas na imprensa tenham sido associadas à UFMG.

A afirmação de Murray vem de uma tradição de pesquisa que procurou estabelecer uma correlação entre raça e cognição no contexto histórico do colonialismo, no qual se buscava cultivar “o aprimoramento da raça”, como se raça, assim como sexo, fossem dados materiais evidentes nos corpos, e não marcas produzidas e materializadas por práticas discursivas que atuam reiteradamente no sentido de manter relações de dominação. Considero que o grande problema do trabalho de Murray seja justamente não levar em conta esse contexto de produção e manutenção de uma realidade de desigualdade e ver essa correlação como “um indiscutível fato empírico”, como afirmou em sua entrevista a Isto É (15/10/08), na qual também declarou seu ódio às cotas.

Essa perspectiva de ciência empírica, neutra e “objetiva”, que “descobre” fatos indiscutíveis, está presente inclusive na UFMG e, certamente, nas “instituições acadêmicas respeitadas” dos Estados Unidos, tais como Harvard. Foi um reitor desta universidade que disse, recentemente, que as mulheres são menos aptas para ciências exatas por alguma característica intrínseca. É verdade que ele acabou perdendo seu cargo graças a uma reação política à sua fala na própria universidade, mas não creio que o argumento contra ele tenha sido feito no sentido de opor o “caráter não-científico” ou “pseudocientífico” de sua fala a uma ciência que não é “pseudo”, que não “se transformou” em ideologia.

Considero que o apelo à autoridade da academia para impedir a fala de quem se opõe ao nosso posicionamento apenas reforça seu suspeito lugar de templo do saber científico “objetivo” e incorpóreo, que transcende os outros saberes, tendo, além disso, o poder de lhes conferir ou não respeitabilidade

Michel Foucault critica o conceito de ideologia justamente por ele possibilitar essa divisão entre uma ciência que produz alguma coisa que seria a verdade e uma “pseudociência” que produz outra coisa que não seria verdade. Para ele, o que interessa é “ver historicamente como se produzem efeitos de verdade no interior de discursos que não são em si nem verdadeiros nem falsos”. Como ele diz, “a verdade não existe fora do poder ou sem poder”.

Nesta mesma linha de argumentação, Bruno Latour vai mostrar, em sua pesquisa no laboratório de física da Universidade da Califórnia, como a produção de um fato científico se dá através de relações de poder. E Donna Haraway define objetividade como um conjunto de saberes localizados, pelos quais o/a pesquisador/a se responsabiliza, não os atribuindo a “fatos indiscutíveis”. Ela propõe a corporificação da objetividade e considera que “a política e a ética são a base das lutas a respeito de projetos de conhecimento nas ciências”. Nossa perspectiva é sempre parcial, por isso é preciso discutir, sim. É preciso uma “conversa sensível ao poder” a partir de um posicionamento crítico num espaço social de produção de conhecimento.

Partindo dessa perspectiva, considero que o apelo à autoridade da academia para impedir a fala de quem se opõe ao nosso posicionamento apenas reforça seu suspeito lugar de templo do saber científico “objetivo” e incorpóreo, que transcende os outros saberes, tendo, além disso, o poder de lhes conferir ou não respeitabilidade. E o que é mais perigoso: tem poder de lhes barrar a entrada. Acho importante ter em mente o caráter político e ético – e não puramente epistemológico – da produção de conhecimento e lembrar, conforme Jacques Rancière, que a racionalidade característica da política é o dissenso e não o consenso, como comumente se pensa.

Na época da ditadura, o professor Pedro Bessa, então diretor da Fafich, em nome da autonomia da Universidade, impediu a entrada de soldados que vieram prender “subversivos” que se posicionavam contrários ao regime. Hoje, em nome de que a UFMG vai impedir a entrada de quem vem para falar? Além disso, será que podemos dizer que o racismo tenha mesmo sido “abolido” da ciência? Dificilmente. Muitas pesquisas na academia podem estar contribuindo para a manutenção de relações de dominação (raciais, de gênero, de classe), mesmo quando não são diretamente financiadas por grupos conservadores. E acho que uma conversa sensível ao poder a partir de nosso posicionamento crítico pode ser útil neste momento.

* Professora associada do Departamento de Psicologia da Fafich

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