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Nº 1682 - Ano 36
8.2.2010

opiniao

Em defesa da radicalidade

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Há uma frase bíblica evocada quando se deseja cobrar de alguém uma postura direta, uma posição explícita ou até uma atitude clara: “Deus vomitará os mornos!”. Tal alerta se dirige àqueles ou àquelas que seguem pela vida afora sem nunca aproximar-se minimamente dos extremos, ficando sempre no ansiado ou proclamado seguro “caminho do meio”. Objetiva-se, com tal postura, evitar qualquer risco de transbordamento ou ruptura da prudência. A mencionada reação divina em relação à apatia humana se encontra no livro do Apocalipse, capítulo 3, versículos 15 e 16: “Conheço tuas obras: não és frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente! Mas, porque és morno, nem frio nem quente, estou para vomitar-te de minha boca”.

Essa admoestação bíblica colide frontalmente com um dos pilares da moral grego-romana desde a Antiguidade e que impregna com intensidade a moral do cotidiano: a virtude está no meio. Tal princípio, nascido como teoria completa no século 4 a.C., a partir da obra Ética a Nicômaco, de Aristóteles, anuncia, três séculos após, um ideal de moderação e uma referência de tranquilidade expressos por um relato da mitologia trazido nas Metamorfoses, do poeta latino Ovídio. Conta ele que Hélios (o Sol) tivera um filho, Faêton, com Climene, mas não acolheu a criança; quando Faêton cresceu, foi em busca do reconhecimento do pai que, tendo-o aceito, ofereceu como presente qualquer coisa que o rapaz desejasse. O pedido do jovem foi poder guiar o carro de Hélios, que antes o advertiu com a obrigação de manter-se equidistante do céu e da terra, dizendo-lhe: “pelo meio irás com a máxima segurança”; como o filho não o atendeu, desequilibrando e desviando o Sol, Zeus interveio e liquidou Faêton com um raio.

Ora, há dezenas de mitos, fábulas e histórias com a finalidade de exalar a exclusividade e preferência do caminho do meio; o que não se deve esquecer é que esse caminho pode também ser o da mediocridade. Em nome da sobriedade, da prudência e do comedimento, o máximo que se obtém em muitas situações é a mornidade mediana, regrada e constantemente refreada. A sabedoria popular caracterizou a pessoa que leva a vida em “banho-maria” como aquela que “nem fede nem cheira”. Em oposição a esse comportamento blasé conduzido por indivíduos camaleônicos, o poeta gaúcho Ricardo Silvestrin, no livro O menos vendido (2006), defende a retidão autêntica e destemida como verdadeiro valor humano: “prefiro a crueza a ficarem me cozinhando”.

Encontra-se, na canção Ideologia (1988), composta por Cazuza e Frejat, um grande exemplo de sátira direcionada aos “caretas” e “covardes” que se consideram ou são considerados pessoas ajuizadas. Os músicos, naquela oportunidade, destacaram o apagar da chama revolucionária proporcionada pelos fortes ventos da indiferença e do conservadorismo hegemônicos: “aquele garoto que ia mudar o mundo/agora assiste a tudo em cima do muro”. Diante desse retrato sem retoques do comodismo e da inércia que ainda vigoram em nossa sociedade, como o sujeito deve se comportar criticamente para não entrar na onda do esfriamento utópico cada vez mais em evidência?

Para não ser morno, é preciso ser radical. Cuidado! Em nosso vocabulário usual, há uma oportunista confusão entre radical e sectário. Radical é aquele – como lembra a origem etimológica – que se firma nas raízes, isto é, que não tem convicções superficiais, meramente epidérmicas; radical é alguém que procura solidez nas posturas e decisões tomadas, não repousando na indefinição dissimulada e nas certezas medíocres. Por sua vez, o sectário é o indivíduo tendencioso, intransigente, faccioso, aquele que não é capaz de romper com seus próprios contornos e dirigir o olhar para outras possibilidades.

É preciso ter limites, mas estará o limite exatamente no meio? O essencial é não ficar restrito ao confortável e letárgico centro; muitas vezes o meio pode ficar anódino, inodoro, insípido e incolor. Os opostos se distraem quando os dispostos se atraem. Ou seja, podemos com inteligência tirar proveito dos extremos. Acontece que alguns desses desejos de romper fronteiras mornas só aparecem nos epitáfios, sempre em forma nostálgica e lamentadora de um “eu devia ter...”. Para além da mitologia grega, não é por acaso que outros titãs são tão festejados quando cantam de forma deliciosa e perturbadora (e muito com eles): “Devia ter amado mais, ter chorado mais, ter visto o sol nascer; devia ter arriscado mais e até errado mais, ter feito o que eu queria fazer...”.

A sabedoria para equilibrar essas inquietações pode ser encontrada na reflexão feita no século 5 a.C. pelo filósofo chinês Confúcio: “Eu sei por que motivo o meio-termo não é seguido: o homem inteligente ultrapassa-o, o imbecil fica aquém”. Nesse sentido, ser inteligente não significa necessariamente ser razoável, pois conforme já alertava o escritor irlandês Bernard Shaw: “o homem razoável adapta-se ao mundo; o homem que não é razoável obstina-se a tentar que o mundo se lhe adapte. Qualquer progresso, portanto, depende do homem que não é razoável”. A radicalidade é uma virtude; o vício está na superficialidade.

* Jornalista, formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG.

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