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Nº 1697 - Ano 36
31.5.2010

O sujeito voltou

Vicente Cardoso Jr.

Fotos Foca Lisboa
Charaudeau: "A sociedade não se vê mais por intermédio da visão simplificada de um dominante e um dominado"

A mídia, o espaço público, as ciências: toda a sociedade é campo de embate discursivo. Para a compreensão das relações de forças que constituem o mundo social, o professor Patrick Charaudeau, um dos maiores especialistas contemporâneos em análise do discurso, volta sua reflexão para o sujeito como ator central desse processo, desfazendo a noção de que ele seria apenas o “portador das ideias da sociedade”. Entre os dias 17 e 21 de maio, Charaudeau, que é vinculado à Universidade de Paris XIII, ministrou um minicurso na Faculdade de Letras. Em um dos intervalos de sua programação, concedeu a seguinte entrevista ao BOLETIM.

A análise do discurso é uma área de conhecimento própria ou um método do qual diferentes áreas do conhecimento se valem?

O mais importante atualmente é pensar numa perspectiva interdisciplinar. Análise do discurso é a análise da linguagem do homem que vive em sociedade, em relação com o outro. Esse sujeito produz muitos discursos no espaço público. E eles dependem da organização social, da história, da psicologia, da mentalidade, da cultura. Todas são áreas autônomas, mas têm interesse em se articular umas com as outras. Cada disciplina deve tomar da outra conceitos que lhe são válidos, mas com o seguinte pensamento: qual é esse conceito, como ele se define dentro da outra disciplina, e como, ao tomá-lo e integrá-lo à minha disciplina, vou redefini-lo?

E quais são os principais objetos de estudo da análise do discurso hoje?

São três os principais. Há o discurso das mídias, que engloba todo o sistema de comunicação, incluindo aquele que ocorre nas novas formas de comunicação na internet: blogs, fóruns e redes como o Facebook. São lógicas de interação que ainda estão se estabelecendo. A partir da experiência, da reconstrução constante, o sujeito vai descobrindo de que maneira pode se relacionar com o outro, que identidade pode construir de si e que identidade vai construindo do outro. Também há o discurso político, aqui visto em sentido mais amplo, pois se entende como político tudo o que circula no espaço público. Em terceiro lugar, o discurso de divulgação científica, que tem ganhado muita importância. Antes, as ciências que chamávamos de duras ou exatas, como a física, a química ou até a biologia, permaneciam em um campo fechado. Mas começamos a enxergar que toda descoberta científica gera uma controvérsia social, que obriga os atores a intervir. Assim se estabelece um novo problema, que diz respeito ao que devemos fazer com os resultados da ciência. Essa decisão deve ser tomada no mundo social e político, extrapolando o campo da ciência, como vemos com as questões da bioética, da economia, das crises financeiras, da clonagem, do transgênico.

O sujeito do discurso se destaca em suas pesquisas e é tema central na proposta do seu minicurso aqui na UFMG. Por que a preocupação em trabalhar esse conceito?

Houve uma época, não muito distante, em que as ciências humanas e sociais passaram a desconsiderar a voz do sujeito, partindo de um conceito segundo o qual a sociedade falava e o sujeito não era mais do que portador de suas ideias. Isso representa uma corrente de pensamento que vem da filosofia da antiguidade e, mais recentemente, foi incorporada pela filosofia e sociologia marxistas. Agora, há uma espécie de retorno da relevância do sujeito. Dentro da antropologia, da sociologia, da psicologia social, da análise do discurso, voltou-se a estudar a centralidade do sujeito: se ele é individual ou coletivo, se tem margem de autonomia sobre suas vontades, se tem consciência ou não etc.

Que prejuízo o “desaparecimento” do sujeito trouxe para essa reflexão?

Vivíamos em um mundo dividido em classes sociais, entre dominantes e dominados, sem alteração desses lugares. Os dominantes tinham a possibilidade de construir uma justificativa para sua condição pelos discursos que produziam, sem explicitar a dominação. É o que se chamava de ideologia dominante, o que está dentro de toda a teoria marxista. Essa concepção foi retomada, redefinida e criticada por uma série de sociólogos e filósofos pós-modernistas, que disseram que efetivamente existem sistemas ideológicos, mas que eles atravessam toda a sociedade, todas as camadas sociais. Qualquer que seja o grupo social, ele estabelece seu próprio sistema de pensamento. Passou-se a estudar não só a ideologia dominante, mas todos os sistemas de valores que se constroem dentro dos grupos sociais. Um grupo étnico constrói sua ideologia; assim como um grupo religioso ou um grupo profissional, por exemplo, que também constroem sistemas de valores próprios.

Esse modo de análise é mais adequado para compreender o sujeito contemporâneo, por revelar um caráter mais plural em sua identidade?

Isso é a salvação da democracia, porque, a partir do momento em que se concebe que ideologia são sistemas de ideias e valores que surgem em todos os grupos sociais, vemos como a democracia é uma relação entre sistemas de poder e de contrapoder. A democracia não é a dominação de uma maioria, e sim a possilidade de as minorias se expressarem e defenderem no espaço público seus próprios sistemas ideológicos. A sociedade não se vê mais por intermédio da visão simplificada de um dominante e um dominado. Passa-se a enxergar como aquele que é dominado em alguma situação pode ser dominante em outra. Todo o jogo que se desenvolve em um espaço público envolve relação de forças, de muitas estratégias que podem ser acionadas pelos indivíduos. Essa visão deixa para cada um a possibilidade de existir com mais autonomia, o que é bem diferente de uma sociedade em que dominantes são sempre os mesmos, e os dominados também.