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Nº 1712 - Ano 37
27.9.2010

opiniao

ABORTO: por que a AUTONOMIA
das mulheres incomoda tanto?

Claudia Mayorga*

Otema da legalização do aborto no Brasil tem sido marcado por impasses: se por um lado assistimos, principalmente a partir das conferências nacionais e internacionais de políticas para as mulheres, à construção de demandas ao Estado brasileiro pela descriminalização do aborto, inserindo o tema no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, por outro, observamos o crescimento e a explicitação de posições conservadoras por parte de grupos religiosos que aumentaram sua força política no Congresso Nacional Brasileiro e que tem construído, de forma sistemática, forte oposição em relação à questão.

Tal impasse nos coloca mais uma vez a pergunta sobre por que o aborto continua sendo um tema “intocável” na sociedade brasileira. Quais poderes e interesses estariam em jogo quando se discute o aborto legal?

Nos anos 1960 e 1970, o feminismo se consolidou como uma hermenêutica da suspeita, situando-se entre as correntes interpretativas críticas que mantiveram postura de desconfiança ante as práticas culturais, poderes e saberes monológicos e diante das totalizações universalistas marcadas por princípios patriarcais. As lutas das mulheres por igualdade e por reconhecimento das diferenças no campo da política e dos direitos sexuais e reprodutivos, da vivência da sexualidade e autonomia em relação ao corpo terão, como foco fundamental, a luta contra algumas verdades patriarcais que legitimam relações de desigualdade.

Duas dessas verdades, pilares fundamentais para o patriarcado, devem ser novamente problematizadas quando discutimos a autonomia sexual e reprodutiva: a noção de que as mulheres estão estreitamente vinculadas à natureza e que, portanto, a sua sexualidade se resume ao papel da reprodução e a noção de que elas, por sua capacidade “natural” de serem mães, possuem relação especial com os demais, a potencialidade de amar e se entregar incondicionalmente ao outro, mesmo que essa entrega envolva abrir mão da sua condição de sujeito.

O patriarcado, objetivado nos dispositivos de poder como a religião, a ciência, o direito, instituiu verdades, demarcou e construiu as mulheres como “outras”, definindo a representação masculina como o uno, o universal. Uma das críticas que se fará à noção moderna de cidadania diz respeito à exclusão das mulheres, já que elas serão definidas como o oposto do sujeito livre e igual: competirá a elas o lugar da maternidade, cuidado da família e da vida privada, pois, pela sua natureza, teriam características morais, psicológicas e intelectuais distintas, o que justificaria a sua permanência em lugares sociais bastante restritivos, sendo o controle dos seus corpos alvo prioritário do patriarcado.

O feminismo denunciará que existe forte tendência à coisificação da mulher que a leva, frequentemente, a ocupar o lugar do objeto sexual e não de pessoa; denunciará que a sua liberdade sexual e o controle do seu próprio corpo estão vedados através do culto à virgindade, dupla moral, proibição do aborto. Essa contínua vigilância manterá as mulheres em estado de infantilismo que se manifesta, por exemplo, por meio de uma dependência subjetiva à figura masculina. Assim, a mulher constituiu-se a partir de discursos que têm a peculiaridade de serem masculinos; não por simplesmente serem produzidos por homens em oposição às mulheres, mas por ter como condição de possibilidade o silêncio das mulheres.

As mulheres recebem um conjunto de atributos derivados de sua qualidade mais imediata: a maternidade. O instinto materno consiste em um comportamento pré-estabelecido e predeterminado em sua forma e conteúdo e é definido como um comportamento que sustenta e protege a vida. A maternidade se torna a plenitude do feminino; negar essa condição é negar a natureza, o cuidado da vida, o amor materno, a própria feminilidade. Identificar esse aspecto é importante para a compreensão de como as mulheres são heterônomas – definidas como esposas, mães, filhas, ou seja, seres para os outros e não seres com os outros. Características como consciência, liberdade, escolha, discernimento serão historicamente negadas às mulheres. Relacioná-las com a esfera da natureza sustenta relações de desigualdade, atualizando o sistema mítico de naturalização do lugar das mulheres.

É importante destacar que os processos de estigmatização e violência vão ter papel fundamental para a manutenção dessas concepções essencializadoras e a sociedade produzirá sanções àqueles(as) que as transgridam. No caso das mulheres que realizaram ou defendem a legalização do aborto, a estigmatização está fortemente presente: quem são essas mulheres más/ loucas/ignorantes/irresponsáveis/criminosas que interromperam ou defendem a interrupção voluntária da gravidez? Onde está seu instinto materno? Que monstruosidade é essa defendida e realizada por essas mulheres? Esse tipo de julgamento moralizante, culpabilizador e que criminaliza as mulheres está baseado em modelo que tem como base o seu controle através de grande pressão e violência.

O patriarcado tem atuado para negar às mulheres justamente o que pode constituí-las como sujeitos – a autonomia para falar, pensar e agir. Esse aspecto é de suma importância para o debate sobre a legalização e descriminalização do aborto, pois as vozes das mulheres, a partir das lógicas patriarcais, não são reconhecidas como legítimas para falar e agir em prol do direito de decidir. A luta pelo aborto legal é a luta das mulheres pelo direito a ser sujeito de sua própria vida – resistindo às heterodesignações e a favor da autonomia.

*Professora do Departamento de Psicologia, participante do Grupo Psicologia e Feminismos e coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Psicologia Política da Fafich

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