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Nº 1730 - Ano 37
21.03.2011

opiniao

EMOÇÕES

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Precisamos estar mais dispostos a reconhecer que o tipicamente humano, o genuinamente formativo, não é a operação fria da inteligência binária, pois as máquinas sabem dizer melhor que nós que dois mais dois são quatro. O que nos caracteriza e diferencia da inteligência artificial é a capacidade de emocionar-nos, de reconstruir o mundo e o conhecimento a partir dos laços afetivos que nos impactam. Musicalmente, Roberto e Erasmo Carlos já destacavam, em Emoções, a afetividade como sendo a grande condutora da nossa condição humana: “Sei tudo que o amor/é capaz de me dar/Eu sei já sofri/Mas não deixo de amar/Se chorei/Ou se sorri/O importante/É que emoções eu vivi”.

Nesse contexto, podemos compreender, por exemplo, a afirmação categórica feita por Humberto Maturana, em Emoções e linguagem na educação e na política (Editora UFMG, 1998): “o amor é a emoção que funda o social”. Sem a aceitação do outro na convivência, não há comunhão afetiva. É o sentimento que torna pessoas, coisas e situações importantes para nós. Faz sentido, então, pensar, na esteira do biólogo chileno, que “não é a razão o que nos leva à ação, mas a emoção”. Maturana vai justificar a sua linha de análise, ao considerar a centralidade do sentimento como motivador epistemológico: “Dizer que a razão caracteriza o humano é um antolho, porque nos deixa cegos frente à emoção, que fica desvalorizada como algo animal ou como algo que nega o racional. Quer dizer, ao nos declararmos seres racionais vivemos uma cultura que desvaloriza as emoções, e não vemos o entrelaçamento cotidiano entre razão e emoção, que constitui nosso viver humano, e não nos damos conta de que todo sistema racional tem um fundamento emocional”.

A inteligência pode servir-se do cálculo, mas não é cálculo. Consiste a inteligência, fundamentalmente, numa palpitação divinatória do coração, o centro da personalidade, com antenas para o mundo inteiro; palpitação a ser decodificada, organizada e verbalizada pelo cérebro, mas que, em si, nada tem de cerebral. Em suma, a inteligência tem sua fonte no coração, é alimentada por raízes pré-intelectuais. Poeticamente, o romancista irlandês James Stephens, em O vaso de ouro, nos ensinou que há sempre na emoção algo de razão e na razão um tanto de emoção, embora se tente afirmar o contrário: “O que o coração sabe hoje a cabeça compreenderá amanhã, e sendo que a cabeça deve ser a aluna do coração, é necessário que ele seja purificado e livre de toda falsidade, caso contrário somos infectados além de qualquer possibilidade de redenção pessoal”. Recordemos a frase de O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint Exupéry, que fez fortuna na consciência coletiva dos milhões de leitores: “É com o coração (sentimento) que se vê corretamente; o essencial é invisível aos olhos”.

Mesmo que se aceite tal afirmação em sua validade geral, continuamos tendo dificuldade para reconhecer, em cada um de nossos espaços cotidianos, em que consiste esse componente afetivo e de que maneira devemos fomentá-lo. Nós, cidadãos ocidentais, sofremos uma deformação, um empobrecimento histórico que nos levou a um nível jamais conhecido de analfabetismo afetivo. O interdito que separa a intelecção da afetividade parece ter sua origem em que, frente a uma percepção mediada pelo tato, gosto ou olfato, o Ocidente preferiu o conhecimento dos exteroceptores, ou receptores à distância, como são a vista e o ouvido. Se pudesse, a escola, autêntica herdeira da tradição audiovisual, pediria aos alunos que viessem apenas com seus olhos e ouvidos, ocasionalmente acompanhados da mão, em atitude de segurar um lápis, por exemplo, deixando o resto do corpo bem resguardado em casa. “Olhar e não tocar chama-se respeitar” – tal expressão exemplifica bem o desejo do mestre de excluir qualquer experiência que possa comprometer o aluno na proximidade e intimidade. A intromissão do tato, do gosto ou do olfato na dinâmica escolar é vista como ameaçadora, pois a cognição ficou limitada aos sentidos que podem ser exercidos mantendo-se a distância corporal.

Quando se comporta de maneira arcaica, a escola sente uma profunda aversão à sensorialidade e à singularidade. Ao negar a importância das cognições afetivas, a educação se afirma como um pedantismo do saber que se mantém subsidiário de uma concepção de razão universal e apática, distante dos sentimentos e dos afetos, fiadora de um interesse imperial que desconhece a importância de ligar-se a contextos e seres singulares. Essa razão universal, incapaz de perceber a singularidade, não entende que aprender é sempre aprender com outros, pois as estruturas de pensamento não são mais do que relações entre corpos que se interiorizaram, afeições que, ao se tornarem estáveis, nos impõem certo modelo de fechamento ou de abertura diante do mundo.

Contradizendo a sabedoria filosofal trazida pelo músico Raul Seixas, ao preferir “ter uma velha opinião formada sobre tudo” a “ser uma metamorfose ambulante”, a escola conservadora e tradicionalista mostra-se resistente a compreender que a cognição é cruzada pela paixão, por tensões heterônomas, a tal ponto que são as emoções e não as cadeias argumentativas que atuam como provocadoras ou estabilizadoras das redes sinápticas, impondo-lhes fechamentos prematuros ou mantendo uma plasticidade resistente à sedimentação.

À base de investigações empíricas sobre o cérebro e a neurologia, Daniel Goleman, em Inteligência emocional, mostrou que a dinâmica básica do ser humano é o pathos, o sentimento, o cuidado, a lógica do coração. Mais do que o cartesiano cogito ergo sum: penso logo existo, vale o sentio ergo sum: sinto, logo existo. Até porque, por trás do animal racional, que está com a faca e o queijo na mão, encontra-se o animal sentimental, movido pela fome.

* Jornalista formado pelo Centro Universitário de Brasília. Doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG. Graduando em Letras (Português e Inglês) pela Faculdade Pitágoras

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