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Nº 1771 - Ano 38
16.4.2012

opiniao

Entre realidades aumentadas
e bibliotecas vazias

Maria Aparecida Moura*

Os novos alinhamentos permitidos pelos ambientes digitais criaram cenário propício à experimentação da identidade pautada pela informação obtida na descrição fornecida pelo sujeito em situação de interação em espaços digitais ou pelo rastreamento dos traços que evidenciam seus percursos de informação na web. Esse cenário funciona como entreposto no qual sujeitos interagem e negociam através de seus perfis e hábitos de informação e potencializam sua identidade para além da rigidez do corpo, circunstancialmente perene e por vezes rugoso, como diria Milton Santos.

Nesses ambientes somos surpreendidos diariamente por notícias que nos chegam por meio dos dispositivos nômades e seus fluxos de informação. Nota-se que, em tempos digitais e em rede, a máxima ranganathiana, “para cada leitor seu livro/informação”, encontra-se em plena viabilidade técnica. Dentre tantas notícias, duas me chamaram particular atenção nesses dias.

A primeira apresentava os resultados da terceira edição da pesquisa Retratos da leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro em 2011. A pesquisa quantitativa, aplicada pelo Ibope Inteligência, objetivou medir a intensidade, a forma, a motivação e as condições de leitura dos brasileiros, e tomou por referência a população com cinco anos ou mais, residente em 315 municípios brasileiros, alfabetizadas ou não.

A amostra foi composta por 5.012 pessoas e incluiu desde analfabetos até pessoas com formação superior. Na pesquisa, leitor foi identificado como aquele sujeito que “leu, inteiro ou em partes, pelo menos um livro nos últimos três meses, e não leitor, aquele que não leu nenhum livro nos últimos três meses, mesmo que tenha lido nos últimos 12 meses”.

Com relação aos resultados da pesquisa, verifica-se que as bibliotecas são percebidas como fonte de conhecimento para a vida (64%). No que concerne ao uso desses espaços, 7% os utilizam regularmente, 17% os frequentam de vez em quando e 75% não recorrem a eles. Quando questionados sobre o que aumentaria o seu interesse por bibliotecas, os pesquisados apontaram, entre outros motivos, a ampliação e diversificação do acervo, as atividades culturais e o acesso à internet. Todavia, salta aos olhos o fato de 33% dos entrevistados terem respondido que nada os faria passar a frequentar uma biblioteca. O paradoxal nessa situação é que os entrevistados demonstraram ter uma visão positiva em relação a esses equipamentos culturais.

Apesar de concordarem com a frase ler bastante pode fazer uma pessoa “vencer na vida” e melhorar a sua situação socioeconômica, 47% dos entrevistados afirmaram não conhecer ninguém que venceu na vida a partir da leitura. A tentação de uma explicação ligeira para a apatia em relação ao uso de bibliotecas reside no fato de que 55% das pessoas ouvidas também não utilizam a internet.

A outra notícia, tão impactante quanto a primeira, refere-se ao lançamento do projeto Glass, desenvolvido pela Google. O projeto objetiva criar serviços de valor agregado em um par de óculos tecnológico que permite a interação com o ambiente por meio de tecnologias de realidade aumentada (RA). Trata-se de um sistema informático que funciona pela justaposição dos ambientes virtuais e realidade, articulando-os em tempo real na experiência dos sujeitos sociais que adotam dispositivos baseados nessa tecnologia.

O projeto Glass tem como principal apelo o uso combinado de diferentes mecanismos em que o dispositivo pode comunicar-se com as informações virtuais incorporadas ao contexto e amplia as experiências informacionais, culturais, profissionais e, por que não dizer, humanas, de seus portadores. Com apelo futurista e cool, nos moldes de Matrix e Minority Report, a Google lançou vídeo alusivo ao projeto, que se tornou hit nas redes sociais, e afirma que o propósito é o de “ajudar a explorar e a compartilhar o nosso mundo”.

Em que pese a velocidade de finalização do projeto Glass e a circulação dessa nova prótese entre nós, a simples incorporação de outros dispositivos nômades, como celulares, smartphones e ipads associados à computação em nuvens, quando comparados aos 33% de brasileiros que não vislumbram a possibilidade de virem a frequentar bibliotecas em um futuro breve, indica uma realidade inquietante do ponto de vista sociocultural.

Diante de tal inquietação, a Ciência da Informação, área do conhecimento responsável pela pesquisa, desenvolvimento e aprimoramento de soluções para a organização da infraestrutura tecnológica, a circulação da informação e a fruição de bens culturais, e suas áreas conexas – Biblioteconomia, Museologia e Arquivologia – nunca estiveram tão em evidência e, ao mesmo tempo, tão pressionadas como na atualidade. Em termos políticos, percebe-se um clamor social pela liderança da área nesse momento de intensas mudanças sociotécnicas.

Nesse sentido, o perfil profissional exigido para atuar em realidades tão distintas deverá, inevitavelmente, incorporar ampla formação humanista e a compreensão intelectual, técnica e social da difusão e do uso da informação e do conhecimento em contextos dinâmicos e em tempo real; mas, sobretudo, precisa vislumbrar a formação de sujeitos aptos a atuarem como educadores na formação de leitores dos livros e do mundo, sensíveis ao exercício da cidadania substantiva, cultural e científica. Esses profissionais atemporais tornaram-se imprescindíveis à construção social do saber e à ampliação da autonomia esclarecida como elemento civilizatório em uma sociedade inexoravelmente marcada pela fluidez informacional.

* Professora associada da Escola de Ciência da Informação da UFMG. Coordenadora do Núcleo de Estudos das Mediações e Usos Sociais dos Saberes e Informações em Ambientes Digitais