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Nº 1773 - Ano 38
30.4.2012

Esperança para Prometeu

Pesquisa do ICB propõe alternativa inovadora para tratamento da falência hepática aguda

Ana Rita Araújo

O mito grego segundo o qual Prometeu tem seu fígado diariamente devorado por uma águia revela o fascínio do ser humano pela capacidade de regeneração desse órgão. Tal capacidade, contudo, pode ser comprometida por fatores externos – abuso de medicamentos e infecções, por exemplo – e, como acaba de demonstrar pesquisa da UFMG, pelo próprio sistema imune do paciente, quando identificadas situações de ameaça ao equilíbrio do organismo.

Objeto de artigo publicado semana passada na prestigiosa revista norte-americana Hepatology, a dissertação de mestrado do biólogo Pedro Elias Marques propõe abordagem terapêutica capaz de inibir a resposta inflamatória do organismo a fim de oferecer ao fígado condições de autorrecuperação. Trata-se, segundo o autor do trabalho, de alternativa inovadora para falência hepática aguda, doença com reduzidas alternativas terapêuticas e com alta taxa de mortalidade.

Orientado pelo professor Gustavo Menezes, do Departamento de Morfologia do ICB, Pedro Marques padronizou modelo em camundongo para simular situação em que um paciente houvesse ingerido grandes doses de paracetamol, medicamento de fácil acesso e um dos principais causadores da doença hepática medicamentosa em seres humanos. Utilizando imagens de microscopia intravital, o pesquisador mostrou que a resposta inflamatória exacerbada do organismo leva o órgão a perder sua função.

“Evitar essa resposta quando um medicamento mata células do fígado é uma oportunidade para dar ao órgão tempo de regenerar-se”, afirma. O trabalho sugere o uso de fármacos para bloquear os receptores do sistema imune que reconhecem os chamados produtos de morte celular. A pesquisa utilizou modelo de falência hepática em camundongos (in vivo) e, em paralelo, culturas in vitro de células hepáticas humanas. Nos dois casos, a abordagem farmacológica foi bem-sucedida.

O tratamento proposto pelos pesquisadores da UFMG apresentou índice de melhora de aproximadamente 50% tanto com camundongos quanto nas células humanas in vitro. “Não sabemos se isso será traduzido diretamente para o ser humano, mas temos indicativos positivos, já que as respostas foram muito similares”, afirma Pedro Marques.

Riscos

A morte das células hepáticas por medicamentos ocorre em ­pessoas que ingerem overdoses de fármacos. São comuns em crianças, nas quais a dose tóxica é alcançada mais facilmente devido ao baixo peso, e entre idosos, que além de alta quantidade regular de medicamentos, eventualmente ingerem drogas para combater problemas pontuais. Se o paciente chega ao hospital nas primeiras horas após o incidente, o quadro pode ser revertido com a administração de antioxidantes ou carvão ativado. Caso contrário, em geral não há alternativa ao transplante do fígado, que mesmo realizado com sucesso, não consegue evitar a morte em muitos casos.

Nesse quadro, o paciente costuma apresentar diversos problemas associados, que afetam, por exemplo, o sistema nervoso central e a coagulação, o que, segundo os pesquisadores, pode ser decorrente do excesso de produtos mitocondriais – oriundos de células mortas – na corrente sanguínea. No sangue desses pacientes, eles observaram que tais substâncias alcançavam índices até 400 mil vezes acima dos níveis normais, resultado da morte maciça de células no fígado. “Essa pode ser uma das causas de falência múltipla de órgãos”, acredita Gustavo Menezes, que, em colaboração com a Fiocruz-RJ, teve acesso a banco de sangue de pacientes com falência hepática aguda por uso de medicamentos para a confirmação dos dados em humanos.

O trabalho de Pedro Marques oferece como alternativa a utilização de medicamentos bloqueadores do reconhecimento de produtos de morte celular, especialmente os de origem mitocondrial e as quimiocinas, proteínas que guiam as células do sistema imune até o local onde devem atuar. Dados obtidos in vivo e in vitro mostraram que, se a chegada dessas células ao fígado for bloqueada, a lesão é reduzida em cerca de 70%. “Com 30% do fígado saudável, ainda é possível reverter o quadro, salvar o paciente e evitar o transplante”, comenta o professor Gustavo Menezes, ao destacar que o trabalho de Pedro Marques elucidou o mecanismo de ação do sistema imune diante da ameaça representada pelo excesso de medicamentos. O estudo de Marques focalizou o comportamento dos neutrófilos, células que primeiro chegam a locais inflamados e são responsáveis pela ampliação do dano no fígado em caso de resposta exacerbada.

Os fármacos capazes de atuar como bloqueadores ainda não estão disponíveis no mercado, mas são objeto de estudos básicos; alguns já se encontram em ensaios clínicos para tratamento de outras doenças. “Espera-se que no futuro, quando esse protocolo estiver estabelecido, os hospitais tenham como oferecer suporte clínico para tratar a resposta inflamatória reativa do sistema imune, o que vai, no mínimo, reduzir a chance de o paciente entrar na fila de transplante”, prevê Menezes.

Artigo: Chemokines and mitochondrial products activate neutrophils to amplify organ injury during mouse acute liver failure
Link: onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/hep.25801/abstract
Equipe: André Gustavo Oliveira, Ana Maria de Paula, Bráulio Henrique Freire Lima, Cristiano Xavier Lima, Daniele Araújo Pires, Denise Carmona Cara, Frederico Marianetti Soriani, Gabriel Augusto Oliveira Lopes, Gustavo Batista Menezes, Juliana Gil Melgaço, Laura Lopes Nogueira, Marcelo Alves Pinto, Maria de Fátima Leite, Mauro Martins Teixeira, Pedro Elias Marques, Sylvia Stella Amaral, Remo Castro Russo e Thiago Vinicius Ávila
Financiadores: Programa de Apoio a Núcleos de Excelência (Ponex) – Biofotônica, CNPq, Capes e Fapemig