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Nº 1789 - Ano 38
10.9.2012

opiniao

Os integrados e os marginalizados

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Cientista político e ministro da Cultura durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, em Qual democracia? (1992), registra um fato político de dignidade rara. Conta ele que, em outubro de 1988, na cerimônia em que foi promulgada a nossa Constituição, o deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, propôs uma definição de cidadania, baseada muito mais nos atributos sociais do que nos políticos. “A Constituição [...] quer mudar o homem em cidadão”, ressaltou, na ocasião, o parlamentar. Prosseguiu ele, em tom enfático: “só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa”.

Infelizmente, um dos impedimentos para a efetivação integral da cidadania brasileira passa, segundo Weffort, pela existência histórica de um “sistema dual” ancorado na desigualdade que favorece “os integrados” e prejudica “os marginalizados”. Os efeitos perversos de absurda dicotomia serviram de mote para o economista Edmar Bacha escrever a fábula O rei da Belíndia, em 1974. Belíndia é um curioso país fictício, ambíguo e contraditório, que resultaria da conjunção da Bélgica com a Índia. Trata-se de sátira direcionada à realidade brasileira, composta, ao mesmo tempo, por leis e impostos da Bélgica, nação pequena e rica, e pela realidade social da Índia, país imenso e pobre.

Mesmo inserido no contexto do “milagre econômico” ventilado pelo regime militar, o país se dividia entre os que moravam em condições similares às da Bélgica e aqueles que tinham o padrão de vida da Índia. Resumindo: o Brasil é configurado como uma pequena Bélgica rica cercada por uma porção de Índias pobres.

Considerando os tempos atuais, em que a Índia vem obtendo considerável dinamismo econômico combinado com um peso demográfico impressionante, mesmo não conseguindo içar todos os seus pobres a condições de vida digna, a relevância deste país no cenário global produziu uma mudança perceptiva no processo de segregação brasileira ainda em vigor. Segundo o jornalista Clóvis Rossi, em artigo publicado na Folha de S. Paulo, de 13/04/2005, “a rigor, o rótulo tupiniquim bem que deveria mudar para ‘Beláfrica’, para usar a região em que está concentrada a mais nefanda pobreza”.

Relembrando a composição histórica de preconceitos e estereótipos elaborados durante séculos pela hegemonia dos sistemas de colonização e discursos reducionistas presentes em uma nação cuja ordem escravocrata vem empatando o progresso cidadão, “Beláfrica”, expressão cunhada por Clóvis Rossi, ganha melhor consistência interpretativa, quando tomamos por base os versos de Adão Ventura, presentes no poema Negro forro (1980): “Minha carta de alforria/não me deu fazendas/nem dinheiro no banco/nem bigodes retorcidos./Minha carta de alforria/costurou meus passos/aos corredores da noite/de minha pele”. Significa, portanto, constatar que, no Brasil, tem permanecido intacta, em suas linhas gerais, a organização social da cultura oriunda do sistema discriminatório da sociedade escravagista do passado.

O drama do “Brasil dividido” nos acompanha desde os primórdios de nossa formação cambaleante. Nos tempos do Império, Machado de Assis chegou a afirmar, em crônica publicada no Diário do Rio de Janeiro, de 29/12/1861, que “o país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial, esse é caricato e burlesco”. O Brasil oficial está no baile, o Brasil real são os barrados no baile. Quem está no topo é oco de princípios. Quem está na base é cheio de valores. Ganha as ruas o espetáculo “balé ralé”, à maneira de Marcelino Freire, no qual o erudito e o popular se misturam, mas têm sérios problemas de envolvimento.

Esses casos mal resolvidos entre as partes vão formar os ingredientes do “angu de sangue”. Trata-se de uma imagem metafórica, construída pelo escritor pernambucano, que sinaliza para as marcas da violência efervescente. Esta, por sua vez, costuma se expressar de forma fundamentalista por conta de uma sociedade que pratica a alteridade interesseira ou a “cordialidade”, no sentido dado por Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil (1936). O país sofre de um crônico transtorno bipolar: a euforia do “café com pão”, expressa no poema Trem de ferro (1936), de Manuel Bandeira, coexiste com a depressão de “tem gente com fome”, verso-denúncia que intitula o poema de Solano Trindade, publicado em 1944.

Em prosseguimento às reflexões sobre a temática da “nação cindida”, que impede o tratamento cidadão dedicado a todos os brasileiros, o rapper BNegão, na música Enxugando gelo (2003), propõe uma releitura do lema positivista da nossa bandeira. O alerta pretendido pelo artista se dirige ao risco evidente de ampliação da desigualdade social, via promoção de uma minoria próspera e menosprezo de uma maioria desassistida: “Ordem para o povo, progresso pra burguesia”. Pegando o embalo criativo, sugiro outro bordão para o manto cívico: “Ordem para o poder, progresso para o saber”. Destaca-se, assim, o fato de a democratização do saber (cidadania) ser a grande chance que temos para desarticular a concentração de poder (ciladania).

Nesse sentido, compartilhamos da tese de Ana Paula Santos Rodrigues, que, no poema A roda (2010), afirma que “o poder é a maior forma de escravidão”. Em contrapartida, o saber é a maior forma de liberdade. Não é à toa que sobre tais aspectos, o poeta Isaías do Maranhão, no livro Navalha do futuro (1984), deixa para a nossa fortuna crítica e literária dois versos lapidares. São eles: “enquanto houver o pobre e o rico/todas as leis são mentiras” e “um livro não lido é um filho favelado”.

Compreende-se, com a ajuda de tais parâmetros, que no âmbito mais amplo, ou político, da vida social, o saber se define pela capacidade intrínseca de realizar ou fazer, enquanto o poder se sustenta pela força extrínseca de mandar fazer. O poder constrói criados-mudos. O saber fundamenta criadores expressivos.

* Jornalista formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG. Poeta, autor do livro Dezlokado (2010).