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Nº 1789 - Ano 38
10.9.2012


“A vida é conflito, é notícia”

Natália Carvalho

O que acontece quando o direito vira notícia? Essa é a pergunta que tem norteado os estudos desenvolvidos por Mônica Sette Lopes, professora da Faculdade de Direito da UFMG e residente do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (Ieat). Também desembargadora, ela pesquisa a inter-relação dos campos do direito e da comunicação, abordando conflitos que envolvem o comportamento ético dos profissionais de jornalismo e a dinâmica da atuação dos meios formais de resolução de conflitos com o direito.

Em entrevista ao BOLETIM, Mônica Sette Lopes aponta o que considera o grande “paradoxo” dessa relação: a mídia e a opinião pública cobram celeridade nos casos de maior repercussão, e a Justiça, com medo de condenar inocentes, se esmera na produção de provas, o que a leva a ser ainda mais morosa.

Incompreensões entre direito e mídia são comuns. Por que isso ocorre?

Há uma diferença de linguagem entre os dois campos, o que estabelece uma dificuldade de comunicação. E isso é um problema para o direito porque ele se presume conhecido. Presume-se no direito ocidental que todos os cidadãos conheçam as leis e o funcionamento do processo judicial. Criamos um sistema no qual a principal fonte do direito é a lei, composta por códigos que são publicados. Logo, o conhecimento da lei se dá através dessa publicação. A questão é que tal publicação parece não ser suficiente. Uso um exemplo do julgamento do mensalão. Depois das sustentações orais, ouvi na Globonews um jornalista dizendo que o advogado Marcelo Leonardo [também professor da Faculdade de Direito] foi paradoxal. Pois ao mesmo tempo em que apresentou os argumentos de defesa de seu cliente, finalizou sua fala trabalhando com a hipótese da condenação, ao defender o abrandamento da pena. Esse jornalista usou de um raciocínio que não pertence ao direito. Em qualquer defesa, o bom advogado vai proteger o seu cliente de todas as formas possíveis com o uso da argumentação. Cabe ao juiz interpretar fatos e normas, nos limites postos nas manifestações das partes por seus advogados, e estabelecer como elas interagem. O encontro desses dois campos envolve técnicas diferentes tratando de uma mesma matéria, a vida. E a vida é conflito e, portanto, é notícia. Porém, o tratamento da notícia tem tempos diferentes na comunicação e no direito. A mídia é rápida; a notícia exige veiculação imediata e acaba atropelando o tempo do direito, que é funcionalmente mais lento, porque embute a necessidade de prova e de conhecimento do que realmente ocorreu.

De que modo a midiatização de um conflito pode interferir no seu próprio desfecho?

Essa interferência é um dado real. Como, por exemplo, no caso Nardoni [que envolveu a garota Isabela Nardoni que teria sido assassinada pelo pai e pela madrasta em São Paulo]. Costumo brincar que precisamos rezar todos os dias para que o casal seja mesmo culpado, já que as chances de apresentar provas podem ter sido prejudicadas pela formação de um juízo espetacularizado dos fatos. A mídia mobiliza a população, que pressiona juízes, júris e advogados em favor do resultado que julgam como certo. No entanto, há também o lado bom, que é chamar a atenção para a urgência de tratamento de certos casos ou questões. A mídia traz os casos ao conhecimento público, fazendo com que muitas vezes os julgamentos sejam mais ágeis por força disso.

Outro exemplo interessante é o caso Escola Base. Os proprietários do colégio particular de São Paulo foram acusados, em 1994, de molestar sexualmente crianças que estudavam lá. O delegado que cuidava do caso o tratou de forma muito midiática, em vez de se preocupar em apurar os fatos. Os agentes públicos eram a principal fonte para a imprensa, mas a investigação não se fazia com qualidade. A apuração parcial condenava os acusados muito antes da conclusão das apurações. Esse é um caso emblemático, porque a defesa dos acusados só ocorreu no dia que a imprensa os ouviu. A partir do momento em que foram entrevistados por um programa de televisão e deram a sua versão é que ela entrou dialeticamente na roda, e com isso o caso pôde ser resolvido, mas nunca com o mesmo peso da divulgação inicial. Mesmo depois de esclarecidas as circunstâncias, a força daquele clamor inicial não se apagou da memória dos que viveram aqueles tempos.

O senso de justiça partilhado pela mídia e pela população é diferente daquele em que se baseia o direito?

Acredito que haja uma diferença, e existe um paradoxo nisso. Dentro da construção da sociedade moderna o direito é o único lugar para se fazer justiça, pois ninguém pode fazer justiça com as próprias mãos. E o direito é todo assentado na ideia de punição. Se você quebra um contrato, tem que indenizar, se pratica um crime deve pagar por esse crime. Quem trabalha com o direito penal acredita que é preciso desenvolver um direito penal mínimo, em que o menor número de questões possíveis será punido como crime. Mas cria-se dentro do sistema uma expectativa muito grande de que tudo termine em prisão. Dentro da lógica da sociedade “mandar para a cadeia” é a única forma de punição efetiva. Entretanto, o sistema não pode penalizar todos os casos por meio dessa alternativa, até porque ela obrigaria o Estado a dispor de uma estrutura ainda maior para receber esses criminosos. E a matéria jornalística trabalha reforçando a ideia de punição, que está dentro da moral coletiva e que pressiona o direito. Isso faz com que ele desenvolva uma tradição de medo, o medo da injustiça, o medo de punir alguém que não cometeu um crime. Assim, a estrutura formal do direito cria um cuidado absoluto com a produção de provas e revisão de decisões. Por consequência, processos demoram e demandam mais fases para garantir que a justiça seja feita.