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Nº 1797 - Ano 39
05.11.2012

opiniao

Catracas e paus-de-arara: anacronismo e mobilização estudantil

Gustavo Tanus*

A audiência pública da Comissão Nacional da Verdade (CNV) realizada no auditório da Reitoria da UFMG, no dia 22 de outubro, reuniu o reitor Clélio Campolina, a vice-reitora Rocksane Norton, os membros da comissão – o advogado José Carlos Dias, a psicanalista Maria Rita Kehl e a advogada e professora universitária Rosa Maria Cardoso da Cunha –, além de vítimas das atrocidades cometidas pela ditadura militar. Elogio a iniciativa de trazer para dentro do campus uma discussão tão importante para a sociedade brasileira.

A iniciativa ultrapassou a intenção original, que, segundo os organizadores, seria a de “sensibilizar a comunidade acadêmica para as violações de direitos humanos ocorridas nas universidades nos anos de chumbo”, haja vista que a lotação do auditório se deu majoritariamente por discentes secundaristas, futuros estudantes da UFMG.

Enche-me de esperança a possibilidade iminente da reescrita da história, para além das experiências ficcionais – de Lima Barreto, Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro etc. Uma reescrita que permitirá, quem sabe, a emergência dos subalternos, dos oprimidos, dos duramente reprimidos, das massas humanas que anoiteceram serviçais do Império e amanheceram desvalidos da República; uma história que trate não apenas dos heróis tradicionais, dos que se beneficiaram das guerras, das “políticas dos favores”, das ditaduras e até das revoluções. As informações necessárias para essa outra história deverão surgir também da abertura dos arquivos sigilosos da ditadura militar, e por meio da apuração das graves violações dos direitos humanos, entre 1946 e 1988, escopo de trabalho da Comissão Nacional da Verdade.

Na canção Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré, hino dos estudantes de outrora, todos são iguais, convocados à comunhão contra a ditadura. Não é proibido que a cantemos hoje, tentando evitar possíveis anacronismos; que se saiba que não somos iguais, e é este o ponto – é nisso que toda luta do presente deveria estar calcada. É mister que tal certeza seja apresentada aos estudantes e firmemente absorvida por aqueles que, por bandeira, perderam a compostura na audiência e desrespeitaram seu sentido real, sendo indecorosos com os convidados que foram dar seus testemunhos da dor pelos mortos e desaparecidos.

É desejável que esses alunos recriem-se por meio da ressignificação das palavras igualdade e luta, com objetivos menos românticos. Economizariam saliva e pulmões, a serem gastos em conquistas mais significativas do que apenas obter permissão para festas no campus ou baixar o preço do bandejão.

Valeria agora cantar a abertura das bibliotecas da Fale e da Face nos finais de semanas; as ações afirmativas, as leis 11.645/2008 e 12.711/2012, as licenciaturas do campo e índígena, os programas de mobilidade e convênios de cooperação. Essas conquistas permitirão, num futuro imediato, a inclusão social e o exercício para a mudança efetiva do nefasto quadro brasileiro da desigualdade.

Àqueles que atualmente empunham bandeiras como armas, imaginando-se em guerrilha, cujo inimigo ainda hoje é a ditadura – que não possui poderes para além do campo de ação da história –, faço a sugestão de demonstrarem respeito aos parentes das vítimas da ditadura, respeito ao passado; e que se engajem no presente, pois ainda há motivos maiores para continuar lutando. Sugiro que despendam forças para promoção do contato com intercambistas, e que o estreitamento dessa relação possibilite um intercâmbio cultural que ultrapasse os limites dos acordos entre governos; a discussão das ações afirmativas em diálogo aberto com todas as ideologias; o fomento do diálogo entre os estudantes brasileiros indígenas e não indígenas, visandoo a construção de uma nação de todos para todos; faço, ainda, a sugestão do estímulo à ocupação efetiva das bibliotecas da UFMG.

Esta última poderá ser carro-chefe para uma atualização do movimento. O uso dos espaços de estudo permitirá maior contato com os livros, um dos artefatos culturais que torna possível a vitória sobre a ignorância, pelo conhecimento do outro. Esses alvitres poderão ser decisivos para a (re)construção do Brasil – projeto maior daqueles grandes homens e mulheres mortos, vítimas da repressão –, cuja democracia se pautaria no respeito às diferenças, pela manutenção de ações de paz.

Além dos relatos das testemunhas, vítimas da ditadura, ao que se pôde ver e ouvir de alguns anacrônicos presentes na audiência da CNV, afirmo que as lutas pelo acesso ao bandejão são legítimas e devem continuar, pois já dizia o provérbio que “saco vazio não para em pé”. Entretanto, reivindicações como essas nem sempre são adequadas para todas as oportunidades e locais em que esteja o Reitorado. Afinal, nesses tempos – por conquista dos insurgentes contra o golpe de 64, daqueles que participaram do movimento pela anistia e pelas Diretas Já – é possível expressar opiniões sem expor corpo e mente aos aparelhos de repressão, ao discurso do porrete.

Desrespeitar os locais de enunciação com assuntos de interesse doméstico em gritos impetuosos contra ditadura simula uma paridade dissimulada pelo engodo; isto não é nem de perto semelhante às lutas do passado. Afinal, catraca (há semanas transposta em sinal de protesto contra o aumento da refeição) não é sinônimo de pau-de-arara.

*Bacharel e licenciado em Letras pela UFMG. Aluno do bacharelado em Edição da Fale