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Nº 1805 - Ano 39
28.01.2013

Entre notas, um olhar crítico

Matheus Espínola

Ao longo dos últimos 20 anos, o professor Cássio Eduardo Viana Hissa, do Programa de Pós-graduação em Geografia do IGC, reuniu, em notas e rascunhos, observações sobre os vários projetos acadêmicos que orientou e avaliou. Recentemente, ele decidiu organizar suas análises no livro Entrenotas – compreensão de pesquisas, publicado pela Editora UFMG.

A obra faz uma reflexão crítica sobre a forma de ler o mundo por meio das disciplinas científicas convencionais. “A universidade moderna tem se aproximado da imagem de uma indústria de títulos, de diplomas, assim como da produção, em série, de pequenos artigos que pouco ou nada acrescentam à crítica do mundo. Há brilhantes teses, mas também existem trabalhos mecânicos, que adquirem maior visibilidade por estarem afinados com o modelo hegemônico da produção científica”, analisa o professor, pesquisador do Centro de Estudos Sociais da América Latina, autor também de A mobilidade das fronteiras (2002) e organizador e autor de Saberes ambientais (2008) e Conversações: de artes e de ciências (2011), todos também sob a chancela da Editora UFMG.

Em entrevista ao BOLETM, Cássio Hissa argumenta que o exercício de se criarem novos modos de ver e pensar o mundo é minado pela competitividade e pela pressa em se produzir conhecimento. Liberdade criativa, imaginação, leitura e escrita permanente são, em sua concepção, elementos primordiais – incompatíveis, porém, com a escassez de tempo inerente ao mundo moderno, também cristalizada no ambiente universitário.

O senhor sugere que há uma tendência acentuada de submissão ao “imobilismo político e criativo” no meio acadêmico. Poderia explicar como isso vem ocorrendo ao longo do tempo?

A desmobilização política e criativa decorre da progressiva inserção das práticas de mercado nas estruturas sociais e acadêmicas. Há um progressivo avanço de excessos de pragmatismo despolitizado e acrítico, um crescente elogio da competência referenciada pela competição e um apelo desproporcional à técnica e ao exercício mecânico. Em uma caricatura: o mundo tende a se transformar em uma plena e grande fábrica e em um extenso e diversificado mercado.

A pressa em produzir conhecimento contribui para a escassez de criatividade? É possível modificar esse quadro, considerando que a academia parece se orientar pela máxima do “publish or perish”?

A publicação deveria ser compreendida como resultado dos processos criativos e não como um fim em si mesmo. São indispensáveis as pausas para pensar, construir criativas rotinas de pesquisa, leitura e escrita. A possibilidade de modificação desse quadro poderia estar na construção do espírito coletivo, do desejo do compartilhamento de ideias e na solvência progressiva do espírito competitivo articulado ao carreirismo e à concepção da competência fundamentada na velocidade e na produção em série.

Poderia citar outros fatores que limitam a imaginação e reforçam a artificialidade na construção do conhecimento?

A reprodução de modelos convencionais constrange o exercício de criar novos modos de fazer. E os modos de fazer são articulados aos modos de ver e de pensar o mundo. A referida reprodução parece sugerir a existência de apenas um modelo de construir caminhos de pesquisa. A falta de uma rotina de leitura e escrita interfere negativamente nos processos de produção do conhecimento.

Sua análise tem forte teor de crítica ao consolidado sistema de produção de conhecimento. Como espera que seja a recepção de suas ideias?

Há uma considerável abertura do cânone e certa desestabilização do modo convencional de se conceber a ciência e de praticá-la. No âmbito da epistemologia e da ética, é fortemente questionada a postura neutra e imparcial do cientista que se imagina exterior à sua leitura do mundo. Espero que as ideias contidas nessa obra sejam muito bem recebidas e disseminadas.

Há um capítulo em seu livro que propõe nova forma de redigir projetos e resultados de pesquisa. Que critérios devem orientar essa redação? Como fugir do estilo convencional da escrita acadêmica?

A transgressão do modo convencional de escrita é tributária da transgressão ao modo convencional de pensar o mundo. Ele nos impede de assumir nossa presença nos textos e nossa condição de sujeitos que criam, compõem, interpretam, redesenham. Como dispensar a linguagem, em todos os seus recursos e com a delicada liberdade, assim como o imprescindível tempo para construir argumentos que fazem pesquisas de alto nível? Como dispensar os leitores com os nossos textos feitos de palavras fechadas? Como dispensar a crítica? Como não admitir que a boa escrita seja decorrente de boas ideias?

E como aplicar e pôr em prática os conceitos que o senhor defende?

É possível fazer diferente caso haja o desejo de se transformar. A partir de então, é possível construir uma visão de mundo diferente da convencional. O que vem adiante são o hábito da crítica e a produção de rotinas saudáveis e prazerosas de ensino e pesquisa. Imagino que muitos praticam o que defendo, e que muitos desejam praticar. Estamos nos referindo à arte de ler o mundo. É preciso vivência, crítica, liberdade criativa, imaginação, leitura e permanente escrita. Tudo isso é conquistado pelos sujeitos do conhecimento e demanda o tempo que, paradoxalmente, a universidade moderna parece dispensar.