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Nº 1806 - Ano 39
4.2.2013

opiniao

A corrupção da mídia

Marcelo Sevaybricker Moreira*

Não é preciso ser um leitor assíduo de jornais brasileiros para perceber o óbvio: que diariamente a mídia expõe os políticos por meio de novos (ou requentados) casos de corrupção. Mais do que certo: uma das funções básicas dos meios de comunicação de massa, numa democracia, é constranger os políticos profissionais a exercerem bem os seus mandatos, estimulando-os a serem mais responsíveis, isto é, a considerarem os interesses dos cidadãos em sua atuação. Todavia, será mesmo que a vigília de nossa mídia cumpre esse papel?

A primeira evidência que salta aos olhos é a de que o interesse midiático pelos casos de corrupção não dura muito. Com frequência, os jornalistas se esforçam herculeamente em noticiar o último escândalo, mais do que em persistir relatando aos cidadãos como andam os processos judiciais decorrentes, quem foi ou não condenado etc. “Máfia das ambulâncias”, “compra de votos da reeleição”, “anões do orçamento” são apenas alguns de muitos que se tornaram conhecidos nacionalmente e, logo depois, parecem ter sido esquecidos pela mídia.

Além disso, é patente que sua atenção tende a se concentrar na atuação do Estado, isto é, de seus funcionários, eleitos ou não. A corrupção é apresentada como um “mal” estatal, deixando de lado as ligações do Estado com a sociedade: empresários, ONGs e cidadãos comuns parecem ter pouco envolvimento com a corrupção, ou deles não é cobrada a mesma retidão que se espera dos agentes do Estado. Chega-se aqui a um terceiro aspecto importante do comportamento da mídia em relação à corrupção: a sua ótica fortemente moralista, como se a corrupção fosse simplesmente decorrência da falta de caráter dos indivíduos. Por tudo isso, fica claro que se a corrupção ocupa com centralidade o noticiário nativo, ela sempre é tratada superficialmente.

Essa banalização feita pela “grande” mídia converge, todavia, para o senso comum dos brasileiros de que nosso país é essencialmente um país de corruptos. Pesquisa dirigida pelo Centro de Referência do
Interesse Público (Crip-UFMG), em 2011, indica que nada menos do que 97% da população brasileira considera a corrupção no país um problema muito grave ou grave. Além do esforço reiterado da mídia em pautar a política nacional por esse tema, é preciso lembrar também que os próprios políticos brasileiros o exploram eleitoralmente para atingir seus adversários políticos, ainda que, em longo prazo, tal comportamento só contribua para denegrir a imagem pública de todos eles. Isso se comprova anualmente pelo descrédito das instituições políticas formais, como os partidos, Congresso Nacional e Judiciário, fundamentais às democracias modernas.

Partindo de uma linguagem política neoliberal que opõe sociedade civil e Estado e vê neste último uma constante ameaça aos cidadãos, a abordagem midiática da corrupção empobrece nossa compreensão dela e das suas formas de controle. A proposta de redução do Estado e a transferência de suas funções ao mercado implementadas no Brasil a partir dos anos 1990 não conseguiram, entretanto, avançar na superação desse problema.

Raymundo Faoro, jurista gaúcho falecido em 2003, em sua obra magna Os donos do poder, propõe um entendimento diferente acerca desse tema. Na sua longa narrativa de interpretação do Brasil, esse autor assevera que o sistema político herdado de Portugal por nós foi de tipo “patrimonial-estamental”. Essa expressão rebuscada significa simplesmente que o poder político é, no caso, apropriado pelos governantes como se fosse seu patrimônio particular. A obediência ao governante não se faz, portanto, por um princípio de legitimação de um poder impessoal do qual o povo é o real detentor, mas consiste na relação particularizada de cada indivíduo com seu governante, a exemplo da ligação que um ­filho mantém com o pai. É por isso, diz Faoro, que, nesse tipo de sociedade, se enraíza um grupo social “parasitário”, que se aproveita do acesso privilegiado aos cargos de mando, o chamado estamento. Para ele, a despeito das inúmeras transformações pelas quais passou a história brasileira, esse estamento continuou usufruindo do seu status quo privilegiado, contando sempre com a conivência daqueles que efetivamente governam.

Vê-se que Faoro parte de uma linguagem política que não é liberal, mas republicana, sustentando que, quando não é organizada para a promoção do bem comum, a política produz uma sociedade corrompida (e não apenas um Estado ­corrupto). Toda forma de poder político, como o da mídia, utilizada, inclusive, para favorecer uma ­minoria, contrariando o interesse público, constitui, portanto, corrupção. Esta pode se materializar quer pelo caso mais noticiado dos desvios de recursos públicos, pela ineficiência do Estado (o que é típico do Brasil, na medida em que tem de atender aos caprichos estamentais), pela cultura do favoritismo e do privilégio etc. No entanto, as diversas manifestações da corrupção – muitas das quais ignoradas pela mídia – são, por assim dizer, subproduto de uma forma de corrupção mais fundamental, que consiste em excluir o povo do direito de dirigir o seu próprio destino.

Contra a tradição de corrupção brasileira, Faoro receitava a radical democratização do poder político em suas diversas formas. Somente promovendo a democratização do Estado e da sociedade (e não eliminando o primeiro), o que implica, entre outras coisas, desconcentrar a propriedade privada dos meios de comunicação brasileiros, que, segundo levantamento recente, é controlada por 30 “Berlusconis”. Contra a tradição daqueles que historicamente se nutrem das relações privadas e espúrias com o Estado, verdadeiros “donos do poder”, é preciso consolidar no Brasil uma mídia democrática, aberta às diversas demandas existentes na sociedade, que não faça do argumento da “liberdade de expressão” uma desculpa para o monopólio da palavra e para o silêncio contra a dominação e desigualdade ainda reinantes no país.

* Professor do Cefet-MG e mestre e doutorando em Ciência Política pelo DCP/UFMG