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Nº 1806 - Ano 39
4.2.2013

Memória e identidade na ditadura

Pesquisadora da Fafich expõe em livro histórias e percepções de mulheres perseguidas pelo regime militar

Itamar Rigueira Jr.

Nove militantes. Diferentes em diversos aspectos, mas com características em comum, além de terem nascido ou ao menos passado a juventude no Espírito Santo: formação marcada pela religiosidade e voltada para o interesse coletivo, leituras precoces que iam de Graciliano a Sartre, inconformismo contra desigualdades e a censura. Elas se encontraram na virada da década de 1960 para a de 70, em organizações que lutavam contra a ditadura militar e também na prisão. Há pouco tempo, foram reunidas de novo, em Vitória, pela professora Ingrid Faria Gianordoli-Nascimento, do Departamento de Psicologia da Fafich, para pesquisa de doutorado, que resultou no livro Mulheres e militância – Encontros e confrontos durante a ditadura militar (Editora UFMG).

Interessada muito mais em vivências que em fatos, Ingrid fez longas entrevistas que cobriram a trajetória das ex-militantes desde a infância até os dias de hoje. Algumas nunca tinham falado sobre as experiências dos anos de chumbo. “Essas mulheres romperam com tradições familiares e de comportamento, e quando estavam entre os homens na militância, se viam relegadas aos papéis femininos convencionais, fingindo-se de namoradas em operações ou cuidando de tarefas domésticas”, comenta Ingrid, que contou com a colaboração das pesquisadoras Zeidi Trindade, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), e Maria de Fátima Santos, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

As entrevistas revelam, de acordo com Ingrid Gianordoli-Nascimento, que, em geral, as mulheres só hoje percebem que sofriam desqualificação de gênero no convívio com os homens, que muitas vezes recorriam a expressões como “mulherzinhas”, “igrejeiras” e “burguesinhas”. “Elas encaravam como ofensas relacionadas à condição política, mas o tratamento reproduzia o que acontecia na sociedade. Não por caso, por sinal, mesmo aquelas com mais condições de exercer funções de liderança não encontravam esse espaço nas organizações.”

Quase todas as entrevistadas – identificadas na obra por nomes fictícios – relatam dilemas que envolveram aspectos como o casamento e a maternidade. Uma delas, no momento de partir para o Araguaia, resolveu casar-se no papel, mas clandestinamente, sem o conhecimento dos pais. “Foi uma forma de, pelo menos, sair casada, o que de alguma forma diminuiria mais tarde a insatisfação da família”, explica Ingrid. Outras duas também não deixaram de se unir oficialmente, mas precisaram transgredir de alguma forma, usando roupas comuns durante as cerimônias, por exemplo.

Gerações

O livro divide as militantes em duas “gerações” na atuação política: a primeira é formada por mulheres que militaram desde a escola secundária e interromperam as atividades pouco depois do AI-5, em 1968; as outras se engajaram no final da década de 60 e foram presas em 1971. Essas passaram dois meses no mesmo quarto em prédio dos órgãos de repressão. Sofreram juntas o horror da tortura.

“Os relatos dos dias na prisão são minuciosos, cinematográficos, de forma que era possível imaginar com clareza cada cena. Isso é efeito da memória do medo. Além disso, a violência da tortura, que tinha características específicas no caso das mulheres, explica a dificuldade de tocar no assunto. Falar é reviver. Ao final, entretanto, todas consideraram importante ter contado. Foi a forma de dar novos sentidos a suas histórias, ainda que de forma muito dolorida”, diz Ingrid Gianordoli-Nascimento, que é mestre e doutora em Psicologia pela Ufes e analisou o material sob conceitos como os de identidade social e memória social.

Ela conta que, antes de procurar as militantes, fez extensa pesquisa em jornais de época e outras fontes: precisava conhecer desde a Vitória da época até as formas de falar e se relacionar que marcaram aquela fase da vida das mulheres. “Era importante que elas estivessem seguras do meu conhecimento e de minha identificação com as suas histórias. Isso tornou as entrevistas mais fáceis e produtivas”, afirma a pesquisadora, que viveu momentos de forte emoção, tanto durante o encontro prévio com as mulheres, quanto durante as entrevistas.

Quando se reuniram, as ex-militantes cantaram juntas, às lágrimas, Assum preto, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, consagrada na voz de Gonzagão. Era uma das canções que elas entoavam no quarto que dividiram por cerca de oito semanas nos porões da ditadura na capital capixaba. “A identificação que as levou à clandestinidade e à prisão se mantém em atividades profissionais ligadas a algum tipo de militância social. Elas não se sentem diferentes daquilo que foram, continuam lutando pelos ideais de sempre, de outras formas”, comenta Ingrid Gianordoli-Nascimento.

Livro: Mulheres e militância – Encontros e confrontos durante a ditadura militar
De Ingrid Faria Gianordoli-Nascimento,
Zeidi Araújo Trindade e Maria de Fátima de Souza Santos
Editora UFMG
387 páginas / R$ 46 (preço sugerido)