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Nº 1820 - Ano 39
13.5.2013

opiniao

A universidade ideal e o professor ‘multiversitário’

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Compreendo que a universidade deve ser percebida como “multiversidade”. Ao mesmo tempo, ela precisa funcionar como agência transmissora do saber consagrado, como agência questionadora desse mesmo saber e, ainda, como agência criadora de novos saberes. Como instituição instigadora, a universidade deve estimular a curiosidade, a ousadia e a iniciativa dos envolvidos em seu processo constitutivo.

Considera-se, também, que essa mesma universidade existe em função de uma dada realidade histórica, política e social, da qual é fruto e sobre a qual deve atuar e intervir. Segundo Jacques Derrida, em A universidade sem condição (2003), a instituição de ensino superior deve ser um lugar por excelência do exercício de uma liberdade incondicional de questionamento e proposição. Para o filósofo, a universidade ideal é aquela em que se professa um comprometimento sem limites com a verdade. Assim, surge a questão: que tipo de professor deve estar, para atender aos requisitos anteriormente citados, atuando dentro dela?

Em resumo, dever-se-ia ter num só professor três capacidades igualmente desenvolvidas: a do bom transmissor de conhecimentos, aquele que sabe ensinar; a do bom crítico das relações socioculturais que o cercam e do momento histórico no qual vive; e a do bom pesquisador, capaz de, por meio de estudos sistemáticos e de investigações empíricas, produzir o novo e induzir seu aluno a também criar. A tarefa do professor deve tomar a forma da pedagogia crítica, isto é, o educador precisa fazer mais do que simplesmente legitimar pressuposições partilhadas, conveniências de consenso ou convenções estabelecidas. Deve fazer da sala de aula espaço crítico que realmente ameace a obviedade da cultura – como uma coleção de verdades inalteradas e relações sociais imutáveis.

Dentro de tais espaços, o professor multiversitário deve escavar os “conhecimentos subjugados” daqueles que foram marginalizados e abandonados, cujas histórias de sofrimento e esperança raramente são tornadas públicas. Assim, o educador precisa chamar a atenção para as histórias de mulheres, negros, grupos economicamente em desvantagem e outras categorias sociais, cujos legados banidos ameaçam a legitimidade moral do Estado. As histórias e lutas dos oprimidos são muitas vezes consideradas “memórias perigosas” no inconsciente reprimido do sistema social. Como professores de “memórias perigosas”, o desafio é atritar essas narrativas contra as molduras de referência mais normativas que proporcionam ao conhecimento dominante seu sentido e legitimidade.

Mais do que agentes de crítica social, o professor deve tentar construir uma linguagem de esperança que aponte para novas formas de relações sociais e materiais que atendam aos princípios de liberdade e justiça. O discurso crítico deve ser mais do que simplesmente uma forma de dissonância cultural. Seu objetivo assertivo é o de colaborar na consolidação de uma comunidade democrática fundamentada sobre uma linguagem de associação pública e comprometimento com a transformação social. O discurso crítico deve propor nova narrativa por meio da qual se possa imaginar e lutar por um mundo qualitativamente melhor.

Encarar as escolas como esferas públicas democráticas significa considerá-las centros de emancipação e autonomia, com o objetivo de dar aos estudantes a oportunidade de aprenderem a linguagem da responsabilidade social. Ao politizar a noção de ensino, cabe ressaltar o papel dos educadores como “intelectuais transformadores”. Os professores que adotam essa postura tratam os estudantes como agentes críticos, questionam como o conhecimento é produzido e distribuído, cultivam a prática do diálogo e exercitam com esmero o ofício da crítica construtiva. Crítica, no sentido forte dos filósofos, como investigação fundamental da realidade, isto é, como saber radical.

Quando nos referimos à sabedoria, convém ressaltar a importância da prática da reflexão interior como condutora do autoconhecimento e problematizadora da vaidade humana. Nesse sentido, os versos de Luiz Edmundo Alves, presentes no livro Zuns zum zoom (2012), são lapidares: “saber nem sempre/é da ordem da memória./o que sei do mundo?/o que sei de mim?/meu saber aumenta quando/não me reconheço/o que sei de mim se/transforma comigo, e/com a beleza ambígua/da língua”.

Logo, o legado polissêmico da linguagem revela a multiplicidade de interpretações que devem ser contempladas no processo de aquisição epistemológica. A memória é uma rede que não consegue fisgar todos os peixes. O que nos escapa também é digno de nota. Somos também pescadores de ilusões, conforme salienta o grupo O Rappa. O imaginário é o real mais que real. Eixos e asas compõem as ordenadas e coordenadas do pensamento e da sensibilidade. O exercício da dúvida favorece o cenário da cultura interrogativa, base primordial para uma educação de viés questionador e ativo. As respostas, com esta prática, se tornam resultados mais abertos e dialéticos. Ainda sobre a reflexão de sabedoria trazida pelo ­poeta Luiz Edmundo Alves, vale a pena destacar o reconhecimento autêntico do não saber para a iniciativa humana de aprender e ultrapassar, com consistência, o estado de ignorância, através da assimilação – não simples deglutição – da experiência existencial.

Lembro aqui do ensinamento trazido por Gonzaguinha, em O que é, o que é? (1982): “a beleza de ser um eterno aprendiz”. Como apreciador do desconhecido, o professor consegue detectar nas entrelinhas do familiar o estranho ainda não contemplado pela reflexão corriqueira. Estimula-se, assim, a fundamentação argumentativa de pessoas fora de série, inibindo, em contrapartida, a formação reificadora de pessoas em série.

* Professor das Faculdades Fortium e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG