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Nº 1830 - Ano 39
5.8.2013

opiniao

Tributo à língua portuguesa

* Marcos Fabrício Lopes da Silva

Ao longo da história da música, os compositores brasileiros se mostraram criativos na arte de exaltar ou criticar os parâmetros formais e informais que compõem a língua portuguesa. A Legião Urbana, por exemplo, concebeu, em Meninos e meninas, a subversão gramatical como metáfora de um estado de espírito sentimental: “Eu canto em português errado/Acho que o imperfeito não participa do passado/Troco as pessoas/Troco os pronomes”. Fernando Anitelli, do grupo Teatro Mágico, aproveita os elementos gramaticais como manifesto da liberdade individual, em Sintaxe à vontade: “Todo sujeito é livre para conjugar o verbo que quiser/Todo verbo é livre para ser direto e indireto/Nenhum predicado será prejudicado/ Nem tampouco a vírgula, nem a crase nem a frase/e ponto final!”.

Já o compositor Itamar Assumpção e a poeta Alice Ruiz veem, em Vou tirar você do meu Dicionário, uma ruptura de um antigo relacionamento amoroso como a construção de uma nova gramática do ser: “Eu vou tirar você da letra/nem que tenha que inventar/outra gramática/Eu vou tirar você de mim/Assim que descobrir com quantos/’nãos’ se faz um sim”.

É a própria gramática que dá título, por exemplo, à consagrada composição de Sandra Peres e Luiz Tatit: “O substantivo é o substituto/do conteúdo/O adjetivo é nossa impressão/sobre quase tudo”. Já em Assaltaram a gramática (Lulu Santos e Herbert Viana) nota-se a entrada poética em nosso cotidiano – “botaram poesia/na bagunça do dia a dia” –, enquanto em Detalhes (Roberto e Erasmo Carlos), os “erros do meu português ruim” são mais um dado à coleção de motivos de recordação para a pessoa amada.

Não tem tradução, de Noel Rosa e Ismael Silva, revela uma arguta consciência de linguagem sobre as variantes do idioma e antecipa, em 1932, o debate atual sobre a autonomia e o valor social do português brasileiro, de raiz popular, em relação às variáveis consideradas cultas ou europeias: “Tudo aquilo que o malandro/pronuncia,/ Com voz macia,/É brasileiro, já passou de português”. A falta de intimidade com a norma culta da língua pode gerar pérolas bem-humoradas, mesmo quando se assume uma posição ortodoxa. É o caso de Orora analfabeta, de Gordurinha e Nascimento Gomes, cujo enredo se desdobra em um desencanto amoroso provocado por sucessão de atentados ao idioma. Primeiro, destacamse os atributos da musa “bonitona, perfeita de corpo e cheia da nota”.

Daí em diante, começam as ressalvas: “Mas escreve gato com j/Escreve saudade com c/Pra você ver”. Os exemplos se avolumam: “Ela fala aribu, arioprano e motocicreta/Diz que adora feijoada compreta/Ai, ela é errada demais”. O desfecho prepara o ouvinte para o tiro de misericórdia: “Eu vi uma letra o, bordada em sua blusa/Eu disse: ‘É agora’/ Perguntei seu nome, ela me disse: ‘Orora, eu sou filha do Arineu’/Mas o azar é todo meu”. Explorando a mesma temática, Roberto Roberti e Arlindo Marques Júnior compuseram a marchinha Lili Analfabeta: “Lili Analfabeta/ Quando fala é uma tragédia/Mas, em matéria de amor,/minha gente,/Lili é uma enciclopédia./ Com x escreve ‘chá’,/ ‘Xadrez’ com ch/ Escreve ‘general’ com j.../Mas, quando quer falar só de amor, Lili é poliglota!”.

Nelson Sargento criou o Idioma esquisito, em que ironiza, a partir de uma sucessão nonsense de neologismos, o uso cotidiano de palavras escalafobéticas empregadas pelo emissor muito mais no sentido de impressionar o interlocutor do que se fazer compreender: “Fui fazer o meu samba/ Na mesa de um botequim/ Depois de umas e outras/ O samba ficou assim/ Estrambonático,/ Palipopético/ Cibalenítico, Estapafúrdico/ Protopológico, Antropofágico/ Presolopépipo, Atroverático/ Batunitétrico, Pratofinândolo/ Calotolético, Carambolâmbolo/ Posolométrico, Pratofilônica/ Protopolágico, Canecalônica/ É isso aí, é isso aí/ Ninguém entendeu nada/ Eu também não entendi/ Eu então vou repetir”. Moreira da Silva e Zé Ferreira, em Choro esdrúxulo, usa do mesmo expediente de Sargento: “Sou magnífico, emboladístico/Pois sou metódico no radiodístico/Deixo patético o radiofônico,/ Sou matemático num cântico chorístico”.

Foi apresentada no Sambódromo, em 2007, o samba-enredo Minha pátria é minha língua, fala Mangueira, composto por Lequinho, Júnior Fionda, Aníbal e Amendoim do Samba, que versaram sobre a construção do idioma realizada de maneira multicultural e pluriétnica: “Caravelas ao mar partiram/Por destino encontram Brasil/Nos trazendo a maior riqueza/A nossa língua portuguesa/ Se misturou com o tupi,/tupinambrasileirou/ Mais tarde o canto do negro ecoou/E assim a língua se modificou”.

Neste samba-enredo, é feita uma referência a um verso da canção Língua, de Caetano Veloso, um marco da exaltação do idioma português na MPB: “Gosto de sentir a minha língua roçar/A língua de Luís de Camões/Gosto de ser e de estar/E quero me dedicar/A criar confusões de prosódias/E uma profusão de paródias/Que encurtem dores/E furtem cores como camaleões/Gosto do Pessoa na pessoa/Da rosa no Rosa/E sei que a poesia está para a prosa/Assim como o amor está/para a amizade/E quem há de negar que esta/lhe é superior/E deixa os portuguais morrerem à míngua/‘Minha pátria é minha língua’/Fala Mangueira!/Fala!”.

Sofisticação também é a marca da canção Metáfora, na qual Gilberto Gil, a partir da desconstrução da palavra que intitula a música, defende o empenho do poeta como fundador criativo de imagens polissêmicas: “Por isso, não se meta a exigir do poeta/Que determine o conteúdo em sua lata/Na lata do poeta tudonada cabe/Pois ao poeta cabe fazer/Com que na lata venha caber/O incabível/ Deixe a meta do poeta, não discuta/Deixe a sua meta fora da disputa/Meta dentro e fora, lata absoluta/Deixe-a simplesmente metáfora”. Neste tributo à língua portuguesa, atestamos como o idioma, cantado em tons e versos, é fonte de inspiração para diversos letristas da MPB.

* Professor das Faculdades Fortium e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG