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Nº 1831 - Ano 39
12.08.2013

opiniao

Os ‘travestimentos’ da morte e a experiência estética na vida cotidiana

Wellington Marçal de Carvalho*

“A morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar. É da morte que ele deriva sua autoridade.” (Walter Benjamin)

Já se vão cerca de três anos em que sou tomado por um sentimento estranhíssimo ao chegar, todos os dias, na biblioteca da Escola de Música da UFMG. Essa sensação decorre da mirada, a partir de uma das janelas da sala em que trabalho, do amplo espaço conhecido como “o gramado da Música”. Sei que é uma fatura muito particular, todavia, encontro guarida nas ideias do professor de Teoria da Literatura da Universidade de Stanford, Hans Ulrich Gumbrecht, para um apaziguamento dessa minha reação em relação àquela paisagem, até então sobremaneira estranha, repito, para mim.

Refiro-me, principalmente, ao texto Pequenas crises: experiência estética nos mundos cotidianos, que integra a obra Comunicação e experiência estética, lançada em 2006 pela Editora UFMG. Por ora gostaria de ressaltar, desse instigante trabalho, sua tese segundo a qual as coisas que aparentemente não pertencem aos moldes há muito tempo estabelecidos da experiência estética podem, sim, ser fruídas como belas ou sublimes.

Para consubstanciar o ponto de vista de que a experiência estética funciona como uma interrupção do cotidiano e também resulta de mudanças no quadro situacional, Hans parte dos pensamentos oferecidos por Kant, em Crítica da faculdade do juízo; por Heidegger, em A origem da obra de arte, e, por fim, Martin Seel, em Estética da aparência. Tal corrente filosófica ou viés tradicional postula, em linhas gerais, que o conteúdo dessa experiência não está disponível em situações cotidianas, uma vez que o gozo em face ao belo e ao sublime só se daria no contato com objetos de arte alocados nos templos especialmente construídos para esse fim, tais como museus, bibliotecas e institutos congêneres.

Ciente da impossibilidade da fusão entre arte e vida, Ulrich segue afirmando que a experiência estética nos mundos cotidianos será sempre uma exceção, na medida em que se opõe ao fluxo das nossas experiências cotidianas e, por conseguinte, esses momentos se assemelham a pequenas crises. É o que se desencadeia, conforme ilustra, quando deparamos com os ornamentos nas pontas dos rolos de papel higiênico, confeccionados pelo pessoal de limpeza, nos hotéis pelo mundo. Esses ornamentos impõem-se como rupturas no fluxo da vida cotidiana.

O caráter repentino e irresistível com que surgem proporciona o desvelamento do ser, equivalente a um acontecimento de verdade, detonando uma pequena crise que, ao fim, nutrirá o que Gumbrecht denominará, baseando-se em Heidegger, de “experiência estética na vida cotidiana”. Esse conceito descreve, na proposição do teórico, o conteúdo, os objetos, as condições e os efeitos da experiência estética.

Comungo das desafiadoras ideias de Gumbrecht e penso ser interessante assinalar algumas constelações de circunstâncias em que experiências rotineiras podem ser miradas, de repente, sob luzes outras, melhor dizendo, à luz da experiência estética.

Permito-me ilustrar a assertiva anterior por meio de algumas roupagens assumidas pela morte em nossa vida cotidiana.

O conceito de experiência estética na vida cotidiana parece constituir-se razoável operador de leitura de uma passagem de Perdoando Deus, conto de Clarice Lispector, no momento em que a narradora, numa caminhada pela praia de Copacabana, sentia-se, por puro carinho, “a mãe do que existe” e, repentinamente, é tragada para o real ao pisar em um rato morto. A partir de então seu “eu interior” embrenha-se numa batalha para tentar entender a brutalidade daquela mensagem divina.

Ouso dizer, sob as lentes de Gumbrecht, que os recentes acontecimentos atravessados por uma parcela da comunidade universitária da UFMG, em sua quixotesca peleja contra a kafkiana forma adotada para implantação de dispositivo ultrapassado de aferição de jornada de trabalho, não encontra nomeação mais feliz do que a pequena crise da experiência estética, desta feita, em decorrência de se ter apunhalado qualquer perspectiva de diálogo com os afetados diretamente pela matéria. Essa pequena crise advinda da morte do diálogo, no caso mencionado, só seria superada, talvez, pelo enterro da democracia perpetrado em recente reunião do Conselho Universitário, em que se pseudodiscutiu a paridade no processo de escolha dos dirigentes da Instituição.

Diante de tamanha desolação, o que concluir? Acredito, como vaticinara o crítico literário Antonio Candido, no poder humanizador da Literatura, e, por essa vereda, para superar o embaraço em que somos lançados por tão ardilosas feições da morte na vida cotidiana, recorro a um trecho do conto do escritor angolano Boaventura Cardoso, intitulado Gavião veio do sul e pum!. Nele o narrador, pelo olhar do menino Kaprikitu, sobrevivente de aldeia recém-bombardeada pelos aviões de guerra, metáforas da morte, percebe, após uma chuva, o rebrotar das lavras.

Talvez metonímia da esperança em um mundo menos injusto. Verde como o gramado da Música.

*Servidor técnico-administrativo em Educação e bibliotecário-documentalista lotado na biblioteca da Escola de Música da UFMG. Doutorando em Letras na PUC Minas