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Nº 1834 - Ano 39
02.09.2013

opiniao

Explicando a pátria de chuteiras

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Esquentando os tamborins para a Copa do Mundo, a ser realizada no Brasil, em 2014, eis a pergunta que não quer calar: por que o futebol, admirado como “paixão nacional” e criticado como “ópio do povo”, chama tanta atenção, sendo um dos temas mais recorrentes nas conversas e discussões do dia a dia? Para tentar responder à questão, trago em meu socorro primeiramente um dos grandes pensadores da questão lúdica. Refiro-me a Johan Huizinga (1872-1945). Para esse historiador holandês, a ideia de jogo é central para a civilização. Em seu Homo ludens, de 1938, Huizinga afirma que todas as atividades humanas, incluindo filosofia, guerra, arte, leis e linguagem, podem ser vistas como o resultado de um jogo, ou, para usarmos a terminologia técnica, sub specie ludi (a título de brincadeira).

Huizinga define jogo como “atividade ou ocupação voluntária executada dentro de certos limites fixos de tempo e espaço, de acordo com regras livremente aceitas, mas absolutamente restritivas, que tenha seu fim em si mesma e que se faça acompanhar de um sentimento de tensão, alegria e da consciência de que ela difere da vida cotidiana”. A chave para o fascínio proporcionado pelo futebol está justamente no último trecho da definição de Huizinga, na consciência de que essa atividade difere da vida ordinária. Enquanto o jogo dura, as regras que regem a realidade cotidiana ficam suspensas.

Como a nossa realidade não anda tão primorosa assim, é sempre um prazer abandoná-la em favor de uma outra, que sempre faz sentido, cujas leis conhecemos melhor e na qual já provamos mais de uma vez que somos bons. Aqui o futebol, como qualquer jogo, se torna alienante, mas a alienação é justamente uma das coisas que buscamos com o gesto de brincar. Para Huizinga, são pelo menos três as funções do jogo: a agonística (competição), a lúdica (exuberância, ilusão) e a diagógica (passatempo, ócio). Assim, por brincadeira, mesmo que tudo isso não baste para explicar nossa paixão pelo futebol, serve para demonstrar que a ligação dos homens com o jogo é antiga, profunda e, diria um neurobiólogo, inscrita no DNA.

Outro autor que oferece uma pista interessante para compreender o fascínio ludopédico é Cláudio Mello Wagner. Seu livro Futebol e orgasmo (1998) ajuda a entender as íntimas relações entre duas práticas tão populares: futebol e sexo. O autor é doutor em Psicologia e parte das ideias de Freud e do seu discípulo Wilhelm Reich para explicar, primeiro, por que o futebol é o esporte mais difundido no mundo e, depois, por que algumas partidas são prazerosas e outras, brochantes.

Na visão de Wagner, as duas questões estão interligadas. Em resumo, é o seguinte: segundo Reich, o organismo humano funciona em um movimento de tensão, carga, descarga e relaxamento. Na relação sexual, isso corresponderia à excitação crescente, que leva ao orgasmo (descarga) e ao relaxamento subsequente. Ora, entre os jogos e os esportes modernos, o futebol é aquele cuja alternância de relaxamento e tensão mais se aproxima da do sexo, sobretudo se estabelecermos que o gol, ocasião relativamente rara, corresponde ao orgasmo. No vôlei e no basquete, por exemplo, a frequência de pontos é alta demais para que a analogia com o sexo seja válida – só nos filmes pornográficos, um sujeito consegue encestar tantas seguidas. Talvez seja por isso que um jogo com um número excessivo de gols – especialmente se forem só de um dos times – acaba afrouxando a tensão e se tornando quase tão brochante quanto um 0 a 0.

O autor não fala do futebol feminino nem explica por que os homens costumam gostar mais de futebol do que as mulheres, mas podemos supor que a chamada “curva orgástica” do futebol tem mais a ver com o ritmo erótico masculino do que com o feminino. Curiosamente, o futebol feminino costuma ter muito mais gols do que o masculino. Podemos forçar uma analogia com a capacidade das mulheres (invejada pelos homens) de ter vários orgasmos seguidos.

Devemos também considerar como um dos elementos importantes para entender a importância de que o futebol goza no Brasil o fato de o esporte em questão ter elevado o nacionalismo a uma categoria simbólica entusiasmante. Entenda-se o nacionalismo como aquele que “gera uma grande solidariedade entre os membros da mesma nação, que leva os vários ‘eus’ a se amalgamarem num ‘nós’, e tem o efeito inesperado de apagar os ressentimentos de classe e produz a identificação dos oprimidos com os opressores”, conforme definição do filósofo Sérgio Paulo Rouanet, em Mal-estar na Modernidade (1993). Com efeito, o nacionalismo é fruto do orgulho narcisístico dos povos com suas próprias realizações. Cinco vezes campeão do mundo, o Brasil se orgulha em ostentar o epíteto de “pátria de chuteiras”.

Antes do reconhecimento da nossa excelência futebolística, estávamos severamente divididos. Ou éramos lidos pelos símbolos cívicos que a modernidade e o nacionalismo tomam como modelo de tudo o que é o mais sagrado: o hino, a democracia, a bandeira, as estatísticas de distribuição de moradia, renda e segurança e a moeda – essas coisas que nos deixavam com um gosto amargo na boca e diziam que não prestávamos –, ou éramos simbolizados pelas coisas da vida e do coração: a sensualidade, as comidas e a música, a praia e o sol, a natureza exuberante e as virtudes cardeais como a amizade, a alegria, a cordialidade e a hospitalidade, que ingenuamente glorificavam nosso estilo de vida.

Foi o futebol que juntou hino e povo, que casou camisa e bandeira, que popularizou a ideia de pátria e nação como algo ao alcance do homem comum e não apenas do “doutor” e do mandão. Os campeonatos mundiais que conquistamos obrigaram a juntar civismo burguês e carnaval; jogo e crença religiosa; investimento capitalista e amor pelo Brasil. Tudo isso faz do futebol o jeitinho brasileiro de ser feliz.

* Professor das Faculdades Fortium e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG