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Nº 1834 - Ano 39
02.09.2013

Autodeterminação em termos

Livro da Editora UFMG mostra como agências internacionais condicionam construção do Estado leste-timorense

Itamar Rigueira Jr.

Durante cerca de um ano, entre 2002 e 2003, uma pesquisadora brasileira trabalhou como voluntária no gabinete do primeiro-ministro de Timor-Leste, país que havia se declarado independente poucos anos antes e que vivia etapa especialmente intensa do processo de construção do Estado-nação. As observações feitas pela professora da Universidade de Brasília (UnB) Kelly Cristiane da Silva durante esse período de imersão, somadas à pesquisa no âmbito de Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da UnB, transformaram-se no livro As nações desunidas – Práticas da ONU e a estruturação do Estado em Timor-Leste, recém-lançado pela Editora UFMG.

O objetivo central da pesquisadora foi verificar como a dinâmica da cooperação técnica internacional, sob a coordenação das Nações Unidas, impacta o processo de construção do Estado. “A presença de agências internacionais (Banco Mundial, FMI e Pnud) condicionando todas as dinâmicas de formação estatal me levou a considerar o campo da cooperação técnica como fato social total na medida em que tem enorme influência sobre a definição de projetos civilizatórios, dos contornos institucionais e morais do Estado leste-timorense”, afirma Kelly, que em sua análise se debruça sobre aspectos da ação civil da missão da ONU em operação em Timor em 2003 (UNMISET) – a ONU também atuava nas frentes militar e policial.

A participação dos agentes estrangeiros tem, em um caso como o de Timor-Leste, poder de influência muito abrangente, de acordo com a pesquisadora. Da legislação que regula atos administrativos e políticos ao material que se deve importar para a construção de escolas, passando pela escolha dos idiomas nacionais, os recursos humanos internacionais mantidos pelas Nações Unidas se pronunciavam sobre quase tudo.

A professora pondera, porém, que, “nem sempre a determinação é direta, mas a atuação desses agentes é variável fundamental para se entender o jogo de forças que atravessa muitos processos políticos”, explica Kelly Cristiane da Silva. Ela acrescenta que as conexões das agências com as elites locais constituíram elemento relevante para a compreensão da formação do Estado.

Passado silenciado

Timor-Leste esteve nominalmente sob domínio português por mais de quatro séculos desde o século 16, mas a administração era fraca, conforme salienta a autora, e o regime colonial se instaurou de forma mais efetiva apenas no final do século 19. A independência foi declarada unilateralmente em 1975, mas em uma semana o território acabou tomado pela Indonésia, com apoio dos Estados Unidos. “Os 24 anos seguintes foram marcados por resistência local e internacional, com armas e ação clandestina urbana, mas também na frente diplomática. Até que a ONU consultou a população sobre manter a ligação com a Indonésia com autonomia especial ou tornar-se independente”, relata a pesquisadora visitante da Australian National University e coautora de dois outros livros sobre o Timor-Leste.

O passado distante em contato com javaneses, chineses e árabes, entre outros povos, e as relações coloniais marcadas por interações e negociações múltiplas indicam, segundo Kelly Cristiane da Silva, a complexidade da história local. E essa complexidade não foi considerada pelas agências internacionais responsáveis pela cooperação técnica.

“Os dispositivos discursivos apresentavam 1999 como o ano zero para a construção do Estado, como se não existisse uma longa história de administração estatal. Essa estratégia de silenciamento do passado foi contestada por Portugal e parceiros que tinham memória da época colonial”, conta a pesquisadora. “O investimento na narrativa do ano zero tinha intenção de facilitar a importação de técnicas de governo e matrizes legislativas de qualquer lugar, e houve disputa entre projetos civilizatórios de acordo com a intensidade das ligações dos agentes cooperantes com países anglófonos ou latinos.”

Registro colonial

Um dos conceitos que a antropóloga e professora da UnB desenvolve com maior ênfase em seu livro é o dos “paradoxos das políticas de autodeterminação”. Segundo Kelly, os quadros institucionais e as práticas de cooperação técnica são forjados, em tese, para promover a autodeterminação, mas muitas vezes esses instrumentos são postos a serviço dos Estados doadores. “Depois da Segunda Guerra Mundial, a ONU e agências diversas passaram a oferecer know-how a Estados recém-formados para construir suas estruturas de administração pública. Mas isso, não raro, se transforma em dispositivos de controle e influência. Discurso e conduta dos agentes são informados por um registro colonial, inconsciente, que se oculta ou aparece de maneira difusa”, completa a autora de As nações desunidas, já lançado em eventos em Portugal e no Timor-Leste.