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Nº 1837 - Ano 39
23.09.2013

opiniao

Vacina comportamental

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

O livro 1904: na periferia da história, do escritor e advogado Luis Alberto Côrtes, tem o encanto de nos vacinar contra o vírus do preconceito. Nesta obra encontramos cenas de labor criativo e pertinência documental, em que os méritos de uma revolução saudável e os deméritos de uma revolta doentia são problematizados pelo autor com esmero crítico e esperança utópica. Em exercício de iluminação do presente pelas lições do passado, o autor carinhosamente nos ajuda a atravessar a rua, no sentido de compreender melhor o trânsito da vida. Extrapolando o livro, mas preservando suas propriedades contextuais, é possível reconhecer os antecedentes históricos de um Brasil que nem sempre foi o país do “Zé Gotinha”. Trilhou-se árduo caminho até se chegar a uma realidade sintetizada pelo famoso personagem das campanhas de vacinação, risonho e carismático, que ajudou a popularizar o procedimento como sinal de cuidado afetivo dedicado ao público.

Ao mergulharmos no romance histórico de Côrtes, percebemos que, na contramão, atrapalhando o tráfego, estão os acidentes de percurso, que existem nesta saga brasileira chamada saúde para todos. É preciso tratar também do Brasil que sangra, adverte o narrador. Ouçamos atentamente a lição deixada pelo magistral personagem João Capoeira:

“Não há profissão indigna, mas sim profissional que não se faz digno. (...) A escravidão não terminou, meu amigo. Toda forma de trabalho, em verdade, é uma escravidão, e vários tentarão ser teus patrões a partir de agora. Diretamente, o dinheiro é o patrão mais perigoso. Indiretamente, aqueles mesmos que te aprisionaram durante anos. Só que desta vez, tiram tua liberdade de outra forma, de um modo que quase não irá perceber. E te farão acreditar que é livre, e por vezes só a sua mente poderá sê-lo, mas isso somente quando conseguir entender como tudo funciona”.

Ensinamentos como este solicitam de nossa parte uma inteligência gingada, que faltou, em certos momentos, ao cientista Osvaldo Cruz, e sumiu no mapa, literal e metaforicamente falando, com a ocorrência política do “Bota-abaixo”, promovido pelo prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, com aval do então presidente Rodrigues Alves. Ciência e poder, quando estão autoritariamente juntos, promovem limpeza étnica.

Os investimentos em saneamento básico, conta Luis Alberto Côrtes, foram desperdiçados em atitudes paliativas, a exemplo da nomeação oficial que convocava compradores oficiais de ratos. O fato real foi surreal na pele de Geremias, um dos fios condutores da narrativa. Afinal, em que consistia esse ‘achado trabalhista’? “Remunerando em trezentos réis cada cabeça do bicho entregue pela população às autoridades sanitárias”, informa o narrador, alimentava-se um mercado de cura emergencial e doença prolongada.

É bem verdade que, no rolo compressor, o recolhimento de lixo era incentivado. A abordagem administrativa, alertando a comunidade sobre o seu estado clínico geral, se firmava muito mais em pilares curativos do que em preventivos. Ou seja, o tom alarmista e impositivo das recomendações, somado ao tratamento sensacionalista do caso por parte da mídia, eram preponderantes. Se, por um lado, “as centenas de óbitos de 1903 foram reduzidas para trinta e nove no ano seguinte”, Côrtes contrapõe à estatística um dado histórico-comportamental de grande valia: “as invasões das casas pelas brigadas foram motivo de reclame e indignação da população, que custava a acreditar que o mosquito era o responsável pela transmissão de tão poderosa praga”. Em meio à necessidade louvável de erradicar a peste bubônica, a febre amarela, a varíola, faltou sabedoria científica e política para acolher conhecimentos outsiders e questionar o imediatismo reinante na gestão da saúde pública brasileira, desde 1904 (pelo menos).

O trágico não permanece traumático, quando se tem o generoso. Salta aos olhos, no livro, o lirismo presente, por exemplo, na descrição comentada do reencontro envolvendo o cigano Igor e a espanhola Hermosa: “os dois se uniram novamente após tantos anos num abraço fraternal e longo, sem que fosse preciso que qualquer palavra fosse dita. Porque para que a solidez de uma união familiar seja restabelecida, um abraço vale mais do que mil palavras, por representar novamente o contato, por permitir que ambos sintam novamente o calor de seus corpos, e por representar melhor do que nada o perdão”.

Em nome de um “realismo esperançoso”, o autor advoga por uma vacina comportamental edificante. Considerando tenebrosamente a Revolta da Vacina, em 1904, uma excelente tradução literária de tal fenônemo seria 1984, de George Orwell. Como Côrtes não chove no molhado, seu estilo prefere enveredar pelo doce sabor que a vida pode ter de verdade: “o povo conseguira ser ouvido, instando aqueles e os futuros governantes a perceberem a sua presença e importância, e mostrando que gritaria sempre contra as injustiças, obtendo, enfim, o que se almejara, mesmo sem o apoio financeiro: mudanças profundas na sociedade, uma verdadeira revolução de costumes”.

Ordem para o poder, progresso para o saber. Como promotora da consciência crítica, a educação promove autenticamente a emancipação coletiva. Defensor desta causa, Côrtes, em seu livro, nos deixa uma grande lição: um país saudável é aquele que, vacinado contra o egoísmo tacanho, zela pela qualidade de vida de todos os seus cidadãos.

* Professor das Faculdades Fortium e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG