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Nº 1853 - Ano 40
24.02.2014

"Precisamos compreender a selectividade das doenças autoimunes"

Ana Rita Araújo

A UFMG vai outorgar seu maior título honorífico – Doutor Honoris Causa – ao cientista português António Coutinho, apontado pelo Institut for Scientific Information (ISI) como um dos cem imunologistas mais influentes do mundo. Seu trabalho de mais de quatro décadas inclui a descoberta, considerada revolucionária por muitos de seus pares, de que o sistema imune possui atividade interna substancial, que independe de antígenos externos.

Formador de pesquisadores, Coutinho concilia as aulas na Faculdade de Medicina de Lisboa, nos programas doutorais do Institute Gulbenkian de Ciência (IGC) – que sob sua direção se consolidou como um dos principais centros de formação de pesquisadores em biomedicina do mundo – e em projeto que vai formar, ao longo dos próximos cinco anos, uma centena de jovens africanos em ciências biológicas e biomédicas, “com o mesmo grau de exigência e qualidade que o dos melhores programas internacionais”.

Em entrevista por email ao BOLETIM, Coutinho fala de seus planos de trabalho e aponta um dos desafios que a ciência ainda terá de enfrentar para realmente entender o sistema imune: compreender a seletividade das doenças autoimunes.

Como o senhor vê a decisão da UFMG de homenageá-lo com o título de Doutor Honoris Causa?

Vejo com humildade. É uma enorme honraria para mim, que eu não estou certo de merecer. Claro que também a vejo com muita satisfação, pois muito respeito a UFMG e sei bem que este é um título que a Universidade não atribui com frequência.

Com relação ao seu extenso trabalho, o senhor afirma que faz imunologia sem antígenos. Poderia discorrer sobre isso? 

Ao longo de uma vida de mais de 40 anos a fazer pesquisa em imunologia, trabalhando em laboratório, muito poucas vezes usei antígenos para estudar o sistema imune. Desde muito cedo, trabalhei com ativação de linfócitos e interessei-me pelos “receptores a mitógenos”, que hoje estão muito na moda e são designados por receptores da imunidade “inata”; tais receptores e mecanismos são distintos e independentes dos receptores a antígenos. Depois, quando me dediquei a estudar a imunologia de infecções, descobri que mais de 90% da resposta do hospedeiro infectado não é específica dos antígenos do micróbio. Enfim, interessei-me, sobretudo, pela fisiologia do sistema imune e descobri uma “actividade interna” muito substancial, que é, naturalmente, independente dos antígenos externos. Para estes últimos estudos o importante era justamente o contrário: certificarmo-nos de que os animais estavam isentos de qualquer exposição a antígenos externos, tendo de estudar camundongos germ-free alimentados com dietas de baixo peso molecular sem antígenos, para estar certo de que os antígenos externos não contam para essa actividade que representa a fisiologia autoimune. Como vê, nunca precisei de usar antígenos e de os injectar em camundongos. Como dizia um dos meus mestres, se queremos aprender o sistema imune, o que temos de estudar são os anticorpos, não os antígenos. Todavia, isto não quer dizer que a “especificidade” não é relevante no sistema imune: sabemos que a evolução dos vertebrados adoptou uma “estratégia” baseada na enorme diversidade dos receptores ao antígeno e “inventou” mecanismos genéticos verdadeiramente extraordinários para produzir essa diversidade em cada um de nós. Mais uma coisa que nos interessa a todos, ou a quase todos os imunologistas, é compreender, por exemplo, a “selectividade” das doenças autoimunes: o sistema imune dos diabéticos destrói as células que produzem insulina no pâncreas, mas o dos doentes com esclerose em placas destrói estruturas das células no sistema nervoso. 

É possível vislumbrar respostas para essa questão da seletividade das doenças autoimunes?

“Vislumbrar” é sempre possível, e é assim que a ciência funciona e progride; infelizmente, temos muitas propostas, mas poucas ideias boas. Não temos uma teoria coerente e completa, que possa ser directamente testada, sobre a fisiopatologia da autoimunidade. Os pesquisadores vão fazendo milhares de observações em modelos experimentais, os clínicos fazem o seu melhor com os doentes, quase sempre de forma empírica, já que ainda não há conhecimento científico suficiente para nele basear novas estratégias terapêuticas, mas a verdade é que estamos a assistir a uma autêntica epidemia de alergias e doenças autoimunes cuja prevalência não para de crescer no mundo mais desenvolvido. E nunca um doente autoimune foi “curado” de facto, quero dizer com terapias racionais dirigidas à origem da doença; vamos cuidando dos sintomas e assim ajudamos os doentes, mas não os curamos. 

A que desafios o senhor se propõe hoje, após deixar a direção do ICB?

Felizmente há muitas maneiras de ser útil em ciência, já que os jovens investigadores são muito melhores que eu (e os da minha idade) no laboratório. Mas uma longa experiência pode servir para ajudar no planeamento e na gestão de instituições, em comissões de avaliação, sobretudo no ensino. Os tempos de ensino devem ser ocupados preferencialmente pelos mais velhos, pois os mais jovens têm é de fazer pesquisa, que a fazem melhor. O ensino já não é a transmissão de informação, esta está disponível para todos a todo o momento: o ensino tem de ser “formativo”, com forte componente histórico que sublinhe as figuras exemplares, idealmente por quem viveu essa história directamente (os mais velhos). 

Eu deixei de facto a direcção do IGC, pois me pareceu que, após quase 14 anos, não era saudável manter a mesma “filosofia” institucional, por melhores resultados que tivesse dado. A diversidade é a nossa grande riqueza, aprendemos na Biologia. Actualmente, para além de dar aulas na Faculdade de Medicina de Lisboa e nos programas doutorais do Instituto, integro a Comissão Directiva do IGC, passo algum tempo na Fundação Champalimaud, onde pertenço ao Conselho de Curadores; esta Fundação está ainda a começar, mas já adquiriu grande projecção internacional e tem programas de investigação muito activos; sou também coordenador do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia junto do Primeiro Ministro, onde passo bastante tempo. Essas coisas de conciliar os interesses da ciência e da tecnologia com os interesses dos políticos e com os da comunidade científica, sobretudo em tempos de limitações orçamentais, não são simples. Depois continuo a servir em vários conselhos científicos e de avaliação por esse mundo, nomeadamente no Brasil. Enfim, os meus maiores interesses estão em iniciativas que não tivera tempo de cuidar quando tinha responsabilidades institucionais, mas que estão agora a funcionar muito bem: por um lado, um programa doutoral para os países africanos de língua portuguesa, que o IGC lançou recentemente, apoiado pelos governos de Portugal e Brasil; trata-se de formar, ao longo dos próximos cinco anos, uma centena de jovens africanos em ciências biológicas e biomédicas, com o mesmo grau de exigência e qualidade que o dos melhores programas internacionais; por outro lado, a implantação em Portugal de uma iniciativa de crowdfunding de base televisiva, dirigida a angariar fundos para a ciência que tem muito sucesso em outros países europeus. O resto do meu tempo passo-o quase todo a ouvir seminários e conferências de ciência, felizmente para a minha saúde mental.


Trabalho de Coutinho ajudou a sustentar “teoria da rede”

Foca Lisboa
Tomaz Aroldo: nova visão sobre o sistema imune liberta o corpo de uma guerra inexistente
Tomaz Aroldo: nova visão sobre o sistema imune liberta o corpo de uma guerra inexistente

Em boa parte graças ao cientista António Coutinho, a definição do sistema imune como mecanismo de defesa tornou-se insuficiente para descrever e explicar seu funcionamento. “Ele pautou a imunologia moderna para considerar fenômenos e explicações diferentes, e nisso está uma das suas grandes contribuições”, resume o professor Tomaz Aroldo da Mota Santos, diretor do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG.

Tendo trabalhado em seu pós-doutorado com Coutinho, em Paris, de 1986 ao final de 1988, ele explica que o pesquisador português desenvolveu evidências experimentais de que existe uma atividade imunológica “natural” que deriva de interações das próprias células que constituem o sistema imune, dando amplo apoio experimental para a “teoria da rede”, proposta por um de seus mestres mais queridos, o dinamarquês Niels Jerne, laureado com o prêmio Nobel. Além disso, com Francisco Varela e John Stewart, ele propôs a teoria necessária para acomodar tal complexidade, procurando interpretar o sistema imune na sua globalidade.

“Essa maneira de ver o sistema imune muda nossa compreensão de uma parte importante do nosso corpo, libertando-o de uma guerra inexistente e propondo-nos novas questões sobre o entendimento do funcionamento dos organismos saudáveis e dos que foram acometidos por doenças que envolvam atividades imunológicas, inclusive as infecciosas”, afirma Tomaz Aroldo.

Responsável pelo discurso de saudação na solenidade de entrega do título de Doutor Honoris Causa, no dia 7 de março, no auditório da Reitoria, o professor Nelson Monteiro Vaz foi o primeiro a trazer Coutinho ao Brasil. “Por felicidade minha e de muitos brasileiros, tive a inspiração de trazer António para uma reunião que organizei na SBPC, em Campinas, em 1982, para um simpósio sobre a natureza do conhecer”, relembra.

Segundo Nelson Vaz, Coutinho foi pioneiro ao estudar o ­sistema imune na ausência de doenças. “Sua ‘imunologia sem antígeno’ é revolucionária, embora as pessoas não a compreendam de imediato”, assegura o professor, que trabalhou por um ano no laboratório de Coutinho, em Paris, e publicou com ele estudos sobre atividades “naturais” do sistema imune, como a imunologia da assimilação dos alimentos, processo que pode ser considerado o contrário do que o organismo faz ao tomar contato com vacinas.