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Nº 1860 - Ano 40
21.04.2014

Risco e sofrimento

Tese de doutorado analisa mobilização social para interromper atividades de incinerador em região industrial de Belo Horizonte

Paulo Henrique Mauro

“Todo mundo sabe que a atividade é nociva à saúde, a própria lei diz que é perigosa, mas a ganância e o poder falam mais alto”, afirma Dalva Guimarães, uma das moradoras do bairro Camargos, região Noroeste de Belo Horizonte, quando questionada sobre a operação de um incinerador de resíduos industriais e hospitalares no local, entre os anos de 2003 e 2009.

O discurso de dona Dalva vai ao encontro dos cerca de 130 relatos que compõem dossiê elaborado por moradores que reivindicavam o fim das atividades do incinerador no bairro Camargos. A análise dessa documentação constitui a base da tese de doutorado defendida pela pesquisadora Raquel Oliveira Santos Teixeira no mês passado.

A intervenção de Dona Dalva foi um dos pontos altos da defesa, na avaliação da professora Andrea Zhouri, orientadora do trabalho. “Ela deu um depoimento ao vivo, nos mesmos moldes dos muitos coletados e analisados. Para além da surpresa e da quebra de protocolo, o que emocionou todos os presentes foi o fato de a moradora se reconhecer na exposição altamente acadêmica proferida pela Raquel, ocupando um lugar de fala em um ritual universitário, cujo espaço não contempla qualquer tipo de intervenção da plateia”, comentou.

Testemunhos como o de Dona Dalva dão materialidade a dois conceitos trabalhados por Raquel Teixeira: a geopolítica do risco e o sofrimento social. O primeiro trata das escolhas da administração pública no gerenciamento do uso e divisão do espaço territorial, com vistas ao desenvolvimento econômico e social de uma região, enquanto o segundo é caracterizado pela junção da aflição causada nos moradores pelos males decorrentes das atividades industriais com as exigências burocráticas e o tratamento institucional que o poder público dispensa às suas reivindicações.

“O Parque Industrial Juventino Dias, em torno do qual surgiu o bairro Camargos, foi construído na década de 1940 para modernizar a economia mineira e, ao mesmo tempo, para estar próximo de Belo Horizonte, mas fora do perímetro urbano, conservando a qualidade de vida do centro, planejado e sadio. Podemos perceber nessa escolha certa distribuição dos riscos, uma vez que a população operária, deixada à própria sorte, começou a habitar as imediações do parque”, afirma Raquel Teixeira.

Duplo papel

Integrante do Grupo de ­Estudos em Temáticas Ambientais (Gesta/Fafich), que presta assessoria às ­comunidades atingidas por projetos ambientalmente degradantes, Raquel Oliveira teve contato com a mobilização empreendida pelos moradores do bairro Camargos para expor e terem reconhecidos os danos causados pelo incinerador à saúde. A partir dos relatos e consulta ao material documental produzido, como arquivos de reportagens, vídeos e dossiê sobre os riscos da atividade de incineração, a pesquisadora analisou o discurso da população, o posicionamento do poder público e as questões ambientais, sociais e econômicas que envolvem a implantação desse tipo de empreendimento industrial.

“A tese tomou um rumo que procurou de alguma forma refletir sobre esse duplo papel de pesquisadora e assessora. Por isso recorri a diversas estratégias de pesquisa, entre elas o uso da história oral, metodologia de coleta de depoimentos e de testemunhos dos moradores, sobretudo para compor a história de vida de cada um dos envolvidos no processo de mobilização do bairro”, comenta.

Ao definir a geopolítica do risco, Raquel Teixeira destaca que a escolha de instalação deste tipo de empreendimento é baseada em interesses convergentes dos agentes do Estado e do mercado, o que acaba produzindo uma hierarquia político-econômica sobre o espaço geográfico. “Essa política coincide com a distribuição de classes no espaço urbano que se atualiza nos dias de hoje. As vilas estão agora ameaçadas por atividades de processamento de resíduos gerados pelas fábricas, com a instalação de aterros sanitários e incineradores na região. Esse local, portanto, é alvo de um tipo de investimento que transforma o processamento de resíduos em fonte de lucro”, explica.

O papel do poder público também é analisado no trabalho. A pesquisadora destaca o posicionamento da Secretaria Municipal da Saúde na exigência de comprovação científica e critica a falta de planejamento no gerenciamento das informações. “O Estado já sabia do impacto dessas atividades desde 1973, por meio de estudo produzido pela extinta Superintendência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte (Plambel). O acompanhamento e coleta de dados da região afetada não foram realizados e, ainda assim, a Secretaria exigia uma comprovação mais enfática dos perigos da emissão resultante da incineração realizada próximo aos bairros, dificultando a ação dos moradores”, analisa.

Tese: A gente tem que falar aquilo que a gente tem que provar: a geopolítica do risco e a produção do sofrimento social na luta dos moradores do bairro Camargos, em Belo Horizonte-MG
Autora: Raquel Oliveira Santos Teixeira
Orientadora: Andréa Zhouri
Defesa: 14 de março, no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas